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Associação RUMOS NOVOS - Católicas e Católicos LGBTQ (Portugal)

Somos católic@s LGBTQ que sentiram a necessidade de juntos fazerem comunhão, partilhando o trabalho e as reflexões das Sagradas Escrituras, caminhando em comunidade à descoberta de Deus revelado a tod@s por Jesus Cristo.

28 de Fevereiro, 2013

Bento XVI e os Homossexuais: Balanço e Perspectivas

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

O final do pontificado de Ratzinger é um momento bastante oportuno para avaliações, sobretudo num dos seus aspetos mais polémicos e conflituosos, que é a relação com o mundo homossexual.


À primeira vista, saltam aos olhos as declarações duríssimas contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, as famílias homoparentais e a teoria do género. A equiparação da união homossexual à união heterossexual é considerada uma ferida grave infligida à justiça e à paz. A família sem a dualidade homem e mulher tornaria o filho não um sujeito de direito, mas um objeto que se pode adquirir. E a teoria do género, que contesta a heterossexualidade compulsória e a submissão da mulher ao homem, seria uma autoemancipação do ser humano em relação à criação e ao Criador, conduzindo-o à destruição de si mesmo. Estas oposições da Igreja já existiam no pontificado de João Paulo II, mas Bento XVI deu-lhes uma dimensão catastrófica. Isto teve imensas repercussões na media, além de inevitavelmente alimentar o ódio contra os homossexuais.


Estas declarações, porém, não são tudo. Houve um avanço importante que passou quase desapercebido. Em 2008, discutiu-se na ONU a descriminalização da homossexualidade em todo mundo, conforme uma proposta encabeçada pela França. Os países ocidentais posicionaram-se a favor e os islâmicos contra. A delegação da Santa Sé, ainda que divergindo parcialmente da proposta francesa, manifestou-se pela descriminalização e condenou todas as formas de violência contra as pessoas homossexuais. Para a Igreja, os atos sexuais livres entre pessoas adultas não devem ser considerados um delito pela autoridade civil. Isto significa admitir, no mínimo, que eles não são uma ameaça para a humanidade.


Houve também ruídos de comunicação bastante infelizes. Numa viagem à África, em 2009, Bento XVI declarou que não se pode superar o problema da SIDA só com dinheiro e distribuição de preservativos. Se os africanos não se ajudam, assumindo responsabilidades pessoais para humanizar a sexualidade, o problema aumenta. Correu o mundo a notícia de que o Papa na África disse que o preservativo só aumenta o problema da SIDA. Na verdade, a declaração na íntegra não apoia nem condena o preservativo, mas a sua formulação não foi suficientemente clara para evitar aquele tipo de notícia. No ano seguinte, o Papa finalmente inovou, afirmando que em algumas circunstâncias o uso do preservativo representa o primeiro passo para uma humanização da sexualidade.


Outro avanço foi a declaração das autoridades do Vaticano, há poucas semanas, defendendo os direitos civis para casais de facto, homossexuais ou não, a fim de se garantir questões patrimoniais e se facilitar condições de vida, impedindo injustiças para com os mais fracos. Foi dito que o legislador deve responder às exigências que antes não existiam.


A cidadania LGBT por um lado é fortemente combatida, mas por outro lado é apoiada. Esta disparidade na Igreja Católica deve-se à sua tradição milenar judaico-cristã, que é heteronormativa, e à sua inserção no mundo moderno, onde as mudanças ocorrem num ritmo alucinante. Com o Concílio Vaticano II, nos anos 60, a Igreja incorporou muitos elementos da modernidade, como a aceitação da separação entre Igreja e Estado, o reconhecimento da autonomia das ciências e da liberdade de consciência. A fidelidade à norma reta da própria consciência é um direito e um dever da pessoa, acompanhados da obrigação de sempre buscar a verdade.


De acordo com os ensinamentos da Igreja hoje, nenhum ser humano é um mero homo ou heterossexual, mas é antes de tudo criatura de Deus e destinatário da Sua graça, que o torna filho Seu e herdeiro da vida eterna. Quanto à moral, ela deve basear-se na razão iluminada pela fé, servindo-se das descobertas seguras das ciências. Embora a doutrina católica se oponha à prática homossexual, considerada intrinsecamente desordenada, também reconhece que há pessoas com tendência homossexual em circunstâncias onde a prática é inevitável e a culpabilidade é nula.


A Igreja, porém, não é só o Papa e os Bispos, que formulam estes ensinamentos. São todos os fiéis, que fazem diferentes leituras nos diversos contextos em que vivem. Na França, por exemplo, o deputado socialista e relator do projeto de lei do Casamento para Todos, Erwann Binet, é católico praticante. Ele afirma que os valores aprendidos na cultura cristã e os valores de esquerda são coerentes. O ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair converteu-se ao catolicismo, religião da esposa, e defende o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nos Estados Unidos, a maioria dos católicos votou em Obama, bem como a maioria dos protestantes. Todos eles são protagonistas de mudanças importantíssimas a favor do direito homoafetivo.


É preciso reconhecer também que os homossexuais não estão a salvo em muitos ambientes católicos, onde há pregações homofóbicas utilizando a doutrina com extrema rigidez e sem matizes. Alguns homossexuais são encaminhados para “orações de cura e libertação”, que frequentemente são formas escamoteadas de exorcismo. É um assédio moral devastador. Noutros ambientes católicos, por sua vez, há leigos, religiosos e sacerdotes compreensivos e acolhedores. Há grupos que ajudam as pessoas a conciliarem a orientação homossexual e a fé, como o Dignity USA, o Rumos Novos, o Diversidade Católica e a Pastoral da Diversidade. Um dos grandes desafios é proteger os homossexuais dos ambientes religiosos homofóbicos e encaminhá-los aos ambientes acolhedores.


As mudanças na Igreja começam na sociedade e na vida dos fiéis e, aos poucos, alcançam a teologia, a hierarquia e a doutrina. Não é do Papa e dos Bispos que vêm as mudanças, é das bases. Não se espere muito do próximo pontífice e nem pouco. O mais importante é não haver retrocesso e se ampliarem os espaços de diálogo entre Igreja e sociedade moderna. Jamais se deve aceitar a falácia de que não há lugar para os homossexuais na Igreja. Jamais se deve cair na armadilha do tudo ou nada. Isto só satisfaz o interesse dos religiosos ultraconservadores, que querem ver os homossexuais o mais longe possível, ou pior, “curados”.


Bento XVI despede-se cansado dum ofício desgastante. Inevitavelmente, ficam na nossa memória algumas das suas declarações homofóbicas de ampla repercussão. Porém, ele tem ensinamentos felizes que se repercutiram menos. De entre eles, o que mais pode ajudar a relação entre a Igreja e o mundo homossexual, é este: “o cristianismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva. E é muito importante evidenciar isso novamente, porque essa consciência hoje quase desapareceu completamente”. Nisto, o Papa abre portas para caminhos que ele mesmo não chegou a percorrer. Mas outros podem fazê-lo.

 

A bola está agora do nosso lado!

 

NOTA DE RODAPÉ:

No momento de partida do Papa Bento XVI, não queremos deixar de partilhar com todos este importante documento dos irmãos da Diversidade Católica, do Brasil, que subscrevemos na íntegra. Sensibilizadamente agradecemos a menção à nossa comunidade (Rumos Novos), no mesmo.


Original: aqui.

Adaptação: José Leote (RN)