HOMOSSEXUALIDADE COM VALORES
- Há uma “lei natural”, como tem tendência em afirmar o Magistério, contudo a natureza não é “uniforme”, de modo que nem todos são homens-homens que amam mulheres-mulheres, mas sim que, ao lado dessa franja maioritária, há uma franja “turva”, relativamente extensa de pessoas com tendências “naturais” que não se encontram na linha da hetero-sexualidade.
- Considero que a hetero-sexualidade, que é maioritária por número, tem uma função importante, vinculada com a reprodução e o amor entre sexos-géneros distintos, com a mística e simbologia que suscita. Penso que continua a ser a opção e a tendência maioritária, mas não a única, de modo que não pode impor-se por “natureza” sobre as outras opções e tendências.
- A bíblia judaica tem uma opção preferencial pelas distinções claras e pelas separações líquidas. Por isso criou uma taxonomia de animais “retos” (conformes à sua natureza), que se podem comer… e animais “híbridos” (que não são de uma única natureza) e que não se podem comer… Muitos querem aplicar uma distinção como essa aos sexos-géneros na espécie humana, esquecendo que a realidade tem uns limites “turvos”, uns limites muito importantes, que não são macho-macho nem fêmea-fêmea, mas sim pessoas de outro modo, com todos os direitos. Os que seguem essa “separação clara” da Bíblia deveriam cumprir todas as normas do Levítico (coisa que ninguém defenderá hoje, nem judeu nem cristão).
- A filosofia grega buscou igualmente as dualidades falsamente claras, a partir do esquema da matéria-forma (hilemorfismo de Aristóteles, com a sua lógica da contradição e do terceiro excluído): tudo é matéria ou forma, tudo é macho ou fêmea… Mas a realidade não funciona assim, há centenas de formas/ matérias intermédias, limites difusos, contornos turvos… que marcam precisamente o sentido da realidade que é multiforme e turva para ser mais claramente clara.
- Frente à simplicidade do macho-macho e da fêmea-fêmea surge assim a riqueza imensa de formas mestiças, híbridas ou como lhes queiramos chamar… Expulsar da normalidade da vida e do amor (da natureza) essas formas “distintas” de ser pessoa (ser humano) é ir contra a natureza, ir contra o dom da vida de Deus, da grande profusão e riqueza de espécies e formas e tendências da vida. Essas formas “híbridas”… são híbridas somente se as comparamos com as formas “dominantes”, contudo em si não podem considerar-se híbridas nem mestiças, mas sim que há que estudar-se a sua própria realidade, com o seu valor, ainda que seja minoritária. Se começamos a negar as minorias acaba-se destruindo tudo.
- Nesta linha, aqueles que não são macho-macho ou fêmea-fêmea são um “luxo” da natureza… e deveríamos ter o máximo de cuidado em respeitar a variedade das formas de amor da vida, em nome do Deus Criador… e em nome de Jesus, que veio não para sancionar a lei das identidades fechadas (certo tipo de lei do AT, interpretada por certos rabinos), mas sim abrir um espaço aos que estavam nas zonas turvas da realidade, nos confins…
- E quando digo que os homossexuais (em geral) se podem situar nessa franja turva da realidade não os estou a condenar ou a desvalorizá-los, antes pelo contrário… Conheci faz algum tempo um dos grandes formuladores da lógica das realidades turvas (Newton da Silva)… e desde então guardo um enorme respeito pelas formas não classificáveis da realidade, aquelas que não entram no código dual do macho-fêmea, matéria-forma… Há outras formas de riqueza e de vida na realidade humana.
Uma homossexualidade com valores (Diego Acevedo)
Para todos os que crescemos à sombra da ICAR, uma reflexão sã sobre a sexualidade não é possível sem percorrer um árduo caminho. Para os que, além disso, vivemos uma orientação sexual ou uma identidade de género diferente da heteronormativa, este caminho é tortuoso e não se encontra isento de sofrimento, um sofrimento que nos irmana com os últimos deste mundo e nos convida ao seguimento/ imitação/ identificação com Jesus, o desprezado e crucificado erguido na ignomínia e do lugar dos mortos pela força do Espírito segundo o desígnio amoroso de seu Pai maternal.
Porém, este caminho, para mim, começou noutro lugar. Nos sermões contra a “depravação” dos homossexuais, na boca de presbíteros que mantinham eles mesmos relações homoeróticas e nas leituras dos textos do Magistério que lia, tentando conhecer a instituição à qual dedicava o meu tempo livre no serviço litúrgico.
De acordo com estes, os atos homoeróticos são “depravações graves”, atos “intrinsecamente desordenados”, “contrários à lei natural” e, como tal, “não podem recever aprovação em nenhum caso” (Catecismo da Igreja Católica, 2357).
Quando és um adolescente e estás tentando compreender quem és, por que és diferente, qual é essa diferença e como viver-la, um texto como este é uma lança que se crava no coração e na mente. Estará correto? Sou depravado? O meu afeto e o meu desejo sexual são contrários ao querer de Deus? Se é assim, por que é que eu sempre fui assim? Sou somente um erro da natureza? Por que parece que alguns “depravados” parecem viver felizes se Deus os condena?
Depois de uma luta intensa, compreendi que a homossexualidade fazia parte do meu ser e que não me restava outra remédio senão assumi-la. Ainda que o tenha feito, nesse momento, com um desejo de desdém.
Contudo, como sempre acontece, a vida e as circunstâncias trouxeram novas experiências e perguntas. É lícito exercer ativamente a minha sexualidade? E agora que me apaixonei, poderei viver a alegria de olhar os seus olhos transparentes sem “ofender a Deus”? E se, mais tarde, desejar viver como casal? E/ ou adotar?
Já sem muita confiança, remeti-me teimosamente aos documentos do Magistério. Já não somente era um “depravado” senão que, por formar um casal, os meus “atos” (para a hierarquia da ICAR os homossexuais não têm relações sexuais ou de casal, somente realizamos atos, como os répteis) constituíam um “mal social” e, como tal, os Estados não deveriam reconhecer esse tipo de uniões pois “a tolerância do mal é muito diferente da sua aprovação ou legalização”.
Perguntava-me: Um mal? Sim, “Nas uniões homossexuais está totalmente ausente a dimensão conjugal, que representa a forma humana e ordenada das relações sexuais. Estas, de facto, são humanas quando e enquanto expressam e promovem a ajuda mútua dos sexos no matrimónio e permanecem abertas à transmissão da vida.” (Considerações Sobre os Projetos de Reconhecimento Legal das Uniões entre Pessoas do Mesmo Sexo, 5 e 7).
E voltei a colocar-me questões: O meu amor e o meu desejo são inumanos? Desumanizam-me? Desumanizarão a quem venha a ser o meu parceiro? As nossas relações (homossexuais) necessitam de uma dimensão?
Rapidamente me apercebi que ao lado das pessoas que viviam o “estilo de vida gay” – sob os valores da sociedade de consumo -, havia muitos homens e mulheres que viviam a sua homossexualidade orientados por outros valores. Celibatários, solteiros ou em casal, capazes de viver o seu compromisso vital (religioso, ministerial, com algum familiar em situação de dependência, em casal) orientados por valores humanos nobres e, frequentemente, pelo exemplo de Jesus de Nazaré.
Novamente – como os discípulos do Nazareno, e da sua mão – encontrei graça e vida ali onde as autoridades religiosas encontravam e semeavam pecado e morte.
Foi precisamente a morte de um familiar próximo e muito querido, também ele homossexual e seropositivo, que me fez refletir profundamente. Este homem, outrora religioso, tinha morrido sem atrever-se – quando teve a oportunidade – a formalizar a sua relação de casal e contraiu o VIH procurando migalhas de prazer e de afeto nos lugares abjetos onde muitos homossexuais da sua geração podiam ser, por momentos fugazes, a verdade daquilo que eram na sua versão mais caricatural e indigna.
Compreendi que, ainda que não a tivesse alguma vez experimentado, essa poderia ser a minha realidade se não assumisse de modo construtivo a minha orientação sexual. Assim realizei o êxodo, uma verdadeira páscoa. No meio da comoção da sua morte, conheci um pequeno grupo de homens homossexuais e crentes, de variadas tradições eclesiais, que se reuniam para orar, partilhar o Evangelho e confraternizar. Com eles – recentemente também elas – pude caminhar na experiência alegre de sentir-me não como um “erro”, nem uma excentricidade mas um filho amado de Deus Pai e, contra toda a condenação, proclamar com Paulo: “… não me envergonho do Evangelho, porque é poder de Deus para que todo o que creia alcance a salvação.” (Rom 1, 16).
O Deus da Vida esteja convosco.
Diego Acevedo
Medellín, Colômbia
Artigo original, através do blog de Xavier Pikaza, aqui.
Tradução: JLP (Rumos Novos)