Costumava ter uma fotografia na minha secretária, tirada na Castro Street, em 1983, quando parecia como se a vida homossexual em S. Francisco fosse acabar para sempre. Na fotografia, havia dois homens: o primeiro, alto e esquelético, debruçava-se sobre o outro, que estava numa cadeira de rodas, aconchegando um cobertor sobre o que restava daquele homem desgastado. Um amigo tinha-me oferecido a fotografia, mesmo antes de eu começar a cobrir a epidemia da SIDA para o jornal Washington Post, com a seguinte mensagem: “Quando escreveres esta história, não te esqueças destas pessoas”, disse-me ele. “O tema nada tem a ver com políticas. É sim sobre o ser humano.” O meu amigo morreu alguns meses mais tarde, há quase trinta anos. Desde essa altura, devo já ter passado mais de mil horas a olhar para aquela fotografia, tempo suficiente para memorizar a tristeza profunda nos olhos ocos de ambos os homens.
Já tinha feito a cobertura de guerras, antes do começo da epidemia. Todas elas são feias e dolorosas e injustas, porém para mim nada igualou o pavor que senti enquanto descia a Castro, a Village, ou o Dupont Circle no auge da epidemia da SIDA. Parecia que uma bomba de neutrões tinha explodido: os edifícios permaneciam de pé; os carros estavam estacionados ao longo da berma da estrada; havia bancas de jornais, lojas e aviões a sobrevoar o local, mas as pessoas na rua estavam a morrer. A Castro era percorrida por homens de trinta anos que caminhavam, quando podiam, com o auxílio de bengalas ou apoiando-se nos braços dos seus companheiros ou amigos de saúde ligeiramente melhor. As cadeiras de rodas enchiam os passeios. San Francisco tinha-se transformado numa cidade de cadáveres.
Em 2002, enquanto escrevia um perfil de Larry kramer, o profeta da desgraça da epidemia americana da SIDA, falei com Tony Kushner, que tinha acabado de receber um Prémio Pulitzer pela sua brilhante peça acerca do que se passava naquela altura “Anjos na América”. Ele confidenciou-se o que aqueles dias lhe tinham feito: “Eu tinha começado o meu processo de saída do armário e a vida gay parecia-me tão excitante”, disse-me. Porém, quando acabou de ler o artigo chocante de Kramer, “1112 e a Contagem Continua”, surgido em 1983 no New York Native e exigindo que os homossexuais começassem a encarar a catástrofe que enfrentavam, Kushner apercebeu-se que “estávamos confrontados com uma verdadeira praga. As pessoas começavam a morrer à nossa volta e nós fingíamos que isso não era nada de importante.”
Kramer e muitos outros ativistas mudaram isso tudo. A indignação e novos fármacos ultrapassaram amplamente a negação e o ódio. Nos anos que se seguiram, a epidemia parecia ter desaparecido, embora nunca tal tivesse acontecido, aqui ou em qualquer outra parte do mundo. (No final deste ano, a SIDA terá morto quarenta milhões de pessoas, a maioria das quais em África). Esta semana, numa história poderosa na Times, Donald McNeil realçava que esses dias de má memória poderiam regressar. “As autoridades de saúde norte-americanas relatam um aumento substancial do sexo desprotegido, entre os homossexuais americanos”, escreveu “um desenvolvimento que torna ainda mais difícil combater a epidemia da SIDA”.
Essa é uma forma eufemística de colocar a questão. Thomas R. Frieden, diretor do Centro para o Controle e prevenção de Doenças, foi um pouco mais aberto: “As relações sexuais anais correm a sua própria corrida no que toca ao risco”, disse. Três décadas de dados permitem demonstrar a verdade dessa afirmação. Se as relações sexuais anais estão a aumentar entre os homossexuais – uma tendência verificada não somente nos estados Unidos, mas também na maioria dos países ocidentais – as taxas de infeção por HIV seguir-se-ão.
Por que é que isto está a acontecer? Antes de mais, terá algo a ver com a própria natureza humana. Por que é que as pessoas se recusam a vacinar os filhos contra o sarampo ou a tosse convulsa? Na maioria dos casos, porque nunca viram sarampo e não têm qualquer ideia do que esta doença é capaz de fazer. (Para uma melhor perspetivação da questão, mais de cento e cinquenta mil pessoas morreram de sarampo, no ano passado, nos países em vias de desenvolvimento). O HIV é bem mais perigoso do que o sarampo, mas também muito mais complicado. O HIV está ligado ao sexo, uma necessidade básica humana, mas também com o desejo, vergonha, descriminação e medo. Irão os jovens de vinte anos, apreciando os seus primeiros momentos de aventura sexual, ficar amedrontados porque, dez anos antes deles terem nascido, pessoas como eu viram homossexuais a se contorcerem, a vomitarem e a morrerem nas ruas por onde eles agora andam? Durante algum tempo, nos anos noventa, os homossexuais tiveram medo e as estatísticas demonstram-no. Utilizavam regularmente preservativos e faziam o teste de despiste para ver se estavam infetados. Muitos ainda o fazem, mas outros começaram a cansar-se do colete-de-forças sexual e emocional. Drogas como as metanfetaminas (que eliminam as inibições e aumentam muito o prazer sexual), ao mesmo tempo que criam dependência, apresentam um revés óbvio e imediato: causam um quadro clínico conhecido como “pila cristal”: nada de ereção, nem sexo. Então as pessoas começam a combinar as metanfetaminas (cristal) com o Viagra e uma nova onda de infeções tem o seu início.
Poderemos parar novamente esta epidemia? Claro, ou pelo menos os seus perigos podem ser grandemente reduzidos. Porém, muitas das pessoas infetadas com o HIV (há milhares de casos novos todos os anos) não têm os devidos cuidados de saúde e cerca de um terço deles nem sequer sabem que estão infetados. O racismo, a homofobia e a pobreza continuam a conduzir muito do destino da epidemia.
A única conclusão correta a tirar disto tudo é ouvir, novamente, o aviso de Larry Kramer. O que era verdade em 1983 pode muito bem voltar a ser verdade. “Se este artigo não te faz apanhar um bom susto”, escreveu em “1112 e a Contagem Continua”, “então estamos metidos em sarilhos. Se este artigo não te irrita, enfurece, enraivece e te leva a fazeres alguma coisa, então os homossexuais não têm futuro neste planeta. A continuação da nossa existência depende de quanto irritado ficares… A menos que lutemos pelas nossas vidas iremos perecer”.
Autor: MICHAEL SPECTER
Tradução e Adaptação: JOSÉ LEOTE
Artigo Original: THE NEW YORKER
Fotografia: SEAN GALLUP