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Associação RUMOS NOVOS - Católicas e Católicos LGBTQ (Portugal)

Somos católic@s LGBTQ que sentiram a necessidade de juntos fazerem comunhão, partilhando o trabalho e as reflexões das Sagradas Escrituras, caminhando em comunidade à descoberta de Deus revelado a tod@s por Jesus Cristo.

10 de Abril, 2015

Homossexuais não se podem impor em relação ao que é a maneira normal de viver a sexualidade

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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O bispo de Beja, D. Vitalino Dantas, 73 anos, nasceu em Vila Verde, Braga. Diz que a Igreja não se deve alhear dos que sofrem e não gosta do assistencialismo. Defende a não eternização no poder e espera que o Papa Francisco continue a renovação em curso. É adepto das novas tecnologias. Usa smartphonee tablet.


Disse que os homossexuais eram um dos “lobbies anti-Igreja”. Mantém-no, depois de o Papa Francisco ter dito não ser ninguém para julgar os gays?

Nunca ostracizei quem tem outra tendência em relação à afectividade, à sexualidade. Não a podem é impor, em relação ao que é a maneira normal de viver a sexualidade. Há que respeitar e integrar na sociedade essas pessoas, mas não há que pôr toda a sociedade a funcionar como eles querem. Isso mantenho. Sou radicalmente contra a ideologia de género. Sou a favor de algumas coisas que a ideologia de género trouxe. O homem não tem mais direitos do que a mulher, tem igual dignidade.

Os homossexuais não querem impor a sua sexualidade.
O que critiquei é que havia um lobby muito forte, que levou a quase se impor a ideologia de género a toda a humanidade.

De que forma o sentiu?
Na própria educação e na linguagem. Respeito a afectividade, mas não quero impor a minha afectividade aos outros. Eu sou macho, não sou mulher. Respeito a mulher como mulher e o homem como homem.

Falou de uma sexualidade normal. O que considera normal é a união entre um homem e uma mulher e as outras não?
Considero que a antropologia normal entre homem e mulher não é o mesmo que a antropologia entre dois homens - a sua afectividade e realização sexual não é igual.

Usa a palavra normal.
Normal no sentido que é o que a grande maioria vive, que corresponde ao seu género, ao seu ADN. Que tem futuro para a sociedade. De dois homens não nascem crianças. Uma sociedade não tem futuro se não houver propagação da vida.

É contra as uniões de facto, o casamento e a adopção por homossexuais?
Não sou contra. Respeito, mas não é a minha orientação. Não vou fazer a apologia. Uma humanidade que adoptasse esse caminho como normal estava a condenar-se a si mesma. O que disse foi nesse sentido, não no de ostracizar os homossexuais. Nada disso.

 

Artigo original aqui.

07 de Abril, 2015

OS PROBLEMAS TEOLÓGICOS DA FAMÍLIA, SÃO DOGMAS DE FÉ?

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

(Conferência no Centro Cultural "Francisco Suárez", de Granada).


1. Quando falamos da “família”, de que falamos?

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Para compreender a profundidade e a importância do problema, que aqui afrontamos, há que ter em conta, antes de tudo, que a família é: 1) Uma unidade económica: a transmissão da propriedade (os bens, o património) foi, durante séculos, a base principal do matrimónio (Anthony Giddens, Um mundo desbocado, Madrid, Taurus, 2000, 67-68). 2) Uma unidade jurídica: os deveres e os direitos dos pais, dos filhos, e das relações que devem manter, necessitaram e justificaram uma série de leis e as consequentes subordinações ao poder judicial. 3) Uma unidade de relações emocionais: relações entre os cônjuges, entre os padres e os filhos, entre os irmãos...

Mas aqui é de suma importância assinalar que, na Europa medieval (e ainda em muitas culturas) o matrimónio não se contraia sobre a base do amor sexual, nem se considerava como um espaço onde o amor devia florescer. A desigualdade entre homens e mulheres era intrínseca à família tradicional. Na Europa as mulheres eram propriedade dos maridos. E isto estendia-se, é claro, à vida sexual. Durante grande parte da história, os homens valeram-se de amantes, cortesãs e prostitutas. Os mais ricos tinham aventuras amorosas com as empregadas. Isso sim, os homens tinham que se assegurar de que as suas mulheres foram as mães dos seus filhos.
4) Uma unidade para a procriação: já que o matrimónio e a família constituem normalmente o meio que, mediante a procriação, perpetua a espécie e, sobretudo, socializa os recém-nascidos integrando-os na sociedade.


2. Problemas teológicos da família

Quando neste conjunto de problemas (propriedade, direito, sexo, procriação, educação...) entra a religião e se mistura com tais problemas, a esses problemas soma-se um outro elemento, de enorme importância (para o bem ou para o mal) porque toca onde ninguém mais pode tocar, na intimidade da consciência, ali onde se vê a si mesmo como uma pessoa honrada ou, pelo contrário, como um indesejável, um desprezível, uma má pessoa. Todos os problemas que entram no enorme bloco da “bio-ética” estão condicionados, em grande medida, por esta intromissão do ato religioso na instituição familiar.

Partindo desta suposição, a pergunta que se coloca é a seguinte: os chamados “problemas teológicos da família”, são problemas que afetam a nossa fé cristã? E por tanto, se um crente está em desacordo com as soluções “oficiais”, que se lhes costuma dar a esses problemas, é por isso um mau crente ou mesmo um herege? Dito de outra forma, pode-se discordar das soluções “oficiais”, que se costumam dar aos problemas relativos ao matrimónio e à família, sem ser por isso um mau cristão que põe em sério perigo a sua fé e o seu amor à Igreja?


3. Dogma de Fé

Na Igreja entende-se por “Dogma de Fé”, “uma proposta objeto de fé divina e católica” (K. Rahner-H. Vorgrimler, Diccionario Teológico, Barcelona, Herder, 1966, 185). Esta afirmação baseia-se na definição que, em 1870, fez o concílio Vaticano I: “Deve crer-se com fé divina e católica todas aquelas coisas que estão contidas na palavra de Deus escrita ou tradicional, e são propostas pela Igreja para ser cridas como divinamente reveladas, quer por juízo solene, quer pelo seu magistério ordinário e universal” (Denzinger-Hünermann, 3011). Portanto, para que uma verdade seja Dogma de Fé, nessa verdade têm que se dar dois elementos essenciais: 1º) Tem que ser uma verdade que foi revelada por Deus. 2º) Tem que ser uma verdade que o Magistério da Igreja propõe como revelada por Deus. Se falta um destes dois elementos essenciais, não há (nem pode haver) um Dogma de Fé. A negação (ou o pôr em dúvida) de uma verdade determinada, que não reúna os dois elementos mencionados, não pode ser nunca uma heresia.

Daqui resulta que todos os que não são “dogmas de fé”, são por isso mesmo questões das quais se pode discordar. Seriam, portanto, “questiones disputatae”, segundo a denominação que lhes dava a estas questões a teologia escolástica medieval. Isto é, seriam questões que sempre podem estar submetidas à dúvida, à discussão, mesmo à dissidência.


4. Os problemas relativos à família, são Dogmas de Fé?

Antes de mais, temos presente que uma verdade teológica é “Dogma de Fé” quando essa verdade foi revelada por Deus (na Bíblia ou na Tradição) e quando, além disso, tal verdade foi proposta pelo Magistério da Igreja como uma afirmação de Fé que há-de ser aceite e crida como Dogma. Portanto, não basta perguntar se tal problema concreto (relativo ao matrimónio ou à família) se encontra na “revelação divina”. Além disso, tem que estar fora de dúvida que essa verdade foi proposta pelo Magistério infalível como Dogma de Fé.

Agora, não há nenhuma afirmação teológica, relativa ao matrimónio ou à família, que reúna os dois elementos mencionados. Concretamente, o tema da lei natural (a que costumam apelar os documentos eclesiásticos quando se referem à família) aparece, pela primeira vez, no Magistério solene da Igreja, na Declaração “Dignitatis Humanae” sobre a liberdade religiosa, do concílio Vaticano II, em 1963. O tema da indissolubilidade do matrimónio menciona-se pela primeira vez, num documento pontifício, na Encíclica “Arvanum Divinae Sapientiae”, de Leão XIII, em 1880. O tema da homossexualidade foi assunto dos manuais de teologia moral, até que em 1975, a Congregação para a Doutrina da Fé, na Declaração “Persona humana”, rejeita abertamente as práticas homossexuais como contrárias ao constante magistério eclesial e ao sentimento moral dos fiéis.

Não se trata de analisar aqui estes documentos. Para aquilo que interessa ao presente estudo, basta ter claro que nenhum destes documentos, nem os que trataram posteriormente estes assuntos, foram pronunciamentos do Magistério infalível da Igreja. Portanto, não se trata de doutrinas vinculantes para a Fé dos cristãos.

Em consequência, não se pode afirmar que os problemas que apresenta a teologia do matrimónio e a família sejam temas que afetam a Fé divina e católica. Não o são. Assim o demonstra a história da Igreja e da teologia cristã.

Com efeito, durante os primeiros séculos da Igreja, os cristãos seguiram os mesmos usos e costumes, no que diz respeito ao casamento, que havia no resto do Império romano. Esta situação manteve-se, pelo menos, até ao século IV (J. Duss-Von Werdt, O matrimónio como sacramento, em Mysterium Salutis, IV/2, 411). O qual quer dizer que os cristãos dos primeiros séculos não tinham consciência de que a revelação cristã trouxesse algo novo e específico ao ato cultural do matrimónio em si. Portanto, naqueles primeiros séculos, a Igreja não tinha um Direito matrimonial próprio e específico. Além disso - e isto é importante que se saiba -, a Igreja, durante quase todo o primeiro milénio, não só se regeu nas suas decisões (também sobre o matrimónio e a família) pelo Direito romano, mas que “a custódia da tradição jurídica romana recaiu fundamentalmente na Igreja. Como instituição, o Direito próprio da Igreja em toda a Europa foi o Direito romano. Como se dizia na Lei Ripuaria dos francos (61(58)1), no s. VII, “a igreja vive conforme ao Direito romano” (Peter G. Stein, El Derecho romano en la Historia de Europa, Madrid, Siglo XXI, 2001, 57). Mais ainda, no ano 619, o concilio de Sevilha, presidido por Santo Isidro, invocava o Direito romano como a “lex mundialis”, aceitando assim a sua universalidade (Conc. Hispalense II, can. 1 y 3. Cf. Ennio Cortese, Le Grandi Linee della Storia Giuridica Medievale, Roma, Il Cigno, 2008, 48). E isto manteve-se assim, não obstante as resistências de algum ou outro autor mais puritano, como foi o caso de Beda o venerável. Contudo, desde o ano 620, as Etymologiae de Santo Isidro ergueram-se como a mais importante fonte de referência do Direito romano em toda a extensão da Europa (Peter G. Stein, o. c., 58).

Agora, é importante saber que o Direito romano não dava atenção ao que ocorria dentro da família. As relações entre os seus membros eram um assunto privado, onde a comunidade não intervinha. Todo o Direito recaía sobre o poder e os privilégios do paterfamilias, em que se concentrava toda a propriedade familiar. E todos os poderes sobre a mulher e seus filhos. De maneira que os filhos, mesmo adultos, não podiam possuir bens até à morte do pai (Peter G. Stein, o. c., 7-8).

Como é lógico, estas condições e este vazio de legalidade indicam claramente que as preocupações da Igreja não se centravam nos temas relativos ao matrimónio e à família. Em todo o primeiro milénio, não há documento algum do Magistério que fale dos sete sacramentos. Porque a teologia dos sete sacramentos é elaborada a partir dos comentários ao Decretum de Graciano (.s. XI). Tais comentários fizeram-se, portanto, a partir do s. XII, quando apareceram os primeiros livros de Sententiae ou Tractatus sobre os sacramentos (as Sententiae Divinitatis e o Tractatus de sacramentis do Maestro Simón). Até que se impôs o Tratado de las Sentencias de Pedro Lombardo, que foi aceite como fonte dos comentários dos grandes Teólogos Escolásticos, dos séculos XII e XIII. Mas é importante saber que até ao s. XIV não se impôs a doutrina dos sete sacramentos (José M. Castillo, Símbolos de libertad. Teología de los sacramentos, Salamanca, Sígueme, 1981, 375-301).

Sabemos que o concílio de Trento dedicou a Ses. VII por completo ao tema dos sete sacramentos. Mas, para fixar exactamente o “valor dogmático” que têm as afirmações, que fez o concílio nesta Sessão, há que ter em conta dois pontos capitais: 1º) O anátema que impôs o concílio não significa necessariamente, de modo algum, condenações de heresia (por exemplo, DH 1660; 1759. Cf. P. Fransen, Reflexions sur l’anathème au concile de Trente: ETL 29 (1953) 658). 2º) A pergunta que fizeram aos padres e teólogos do concílio foi se as doutrinas, que ensinavam os reformadores sobre os sacramentos, eram “erros” ou “heresias” (CT 5, 844, 31-32). Mas não houve maneira de chegar a um acordo sobre este assunto. Assim consta expressamente nas Atas do concílio (CT 5, 994, 11-12. DH 1600; cf. José M. Castillo, o. c., 333).

Portanto, não é um “dogma de fé” que os sacramentos sejam sete; nem que o matrimónio cristão seja um sacramento instituído por Cristo. A partir desta afirmação fundamental, há que ter presente que toda a doutrina do Magistério, sobre o matrimónio e sobre a família, nunca foi uma definição dogmática. Sempre foram ensinamentos pastorais, catequéticas ou, em todo caso, de ordem inferior. Nem sequer o concílio Vaticano II se pronunciou dogmaticamente sobre os assuntos que tratou. Foi um “concílio pastoral”. Isto é o que quis João XXIII e manteve Paulo VI.

A conclusão, que cabe tirar do que foi dito, é que todas as questões e problemas, que se apresentaram e se estão debatendo no Sínodo da Família, são questões sobre as que todos os cristãos podemos (e devemos) sentir-nos livres para pensar, opinar e dizer a nossa opinião, sem que por isso devamos ter medo de atentar contra a nossa fé e a nossa fidelidade à Igreja.


5. Questões de maior atualidade

1. Divórcio

Disse que o Direito da Igreja, durante os dez primeiros séculos da sua história, foi o Direito romano. Assim como, nos manuais de Direito romano é ensinado que, pelo menos até ao século IV, a liberdade para se divorciar foi quase total na sociedade romana. A partir do século IV, começou a aumentar uma certa reprovação social nos casos de divórcios que se efetuavam sem uma causa justificada (cf. Aulo Gelio, nas Noches Áticas, em 232 a. C., que provaria a mencionada reprovação social nos casos de divórcio injustificado). A partir do século VI, Justiniano admite o divórcio por “justa causa”. E sabe-se, com segurança, que a Igreja aceitou e praticou esta legislação. Por exemplo, no ano 726, o papa Gregório II responde a uma consulta de São Bonifácio: Que deve fazer o marido cuja mulher tenha ficado doente e como consequência não pode cumprir o seu dever conjugal? “Seria bom que tudo continuasse igual e se entregasse à abstenção sexual. Mas, como isso é de grandes homens, o que não possa aguentar, que volte a casar; mas não deixe de ajudar economicamente aquela que adoeceu e não ficado excluída por más razões” (PL 89, 525). A mesma doutrina sobre o divórcio entre cristãos encontramo-la no papa Inocêncio I, em resposta a Probo (PL 20, 602-603; cf. M. Sotomayor, Tradición de la Iglesia con respecto al divorcio: Proyección 28 (1981) 102-103).


2. Homossexualidade

Este assunto é motivo e causa de enorme paixão e mais ainda de enorme sofrimento. Ambas coisas. Paixão para com aqueles que a rejeitam. E sofrimento que muitos deles padecem ou têm que suportar, nas sociedades em que esta condição da sexualidade humana é fortemente rejeitada.

É sobejamente conhecido que algumas religiões se opuseram, e continuam enfrentando, com violência as pessoas de condição homossexual. Na história do cristianismo, este enfrentamento chegou, por vezes, à violência extrema do assassinato. Antigamente, aos homossexuais queimavam-se vivos, como se fazia como os hereges. Contudo, à medida que passa o tempo, a cultura humaniza-se e, sobretudo, conhece-se melhor o que é a condição humana na sua totalidade, o juízo e a estima social deste assunto vai-se equilibrando.

Costuma-se citar São Paulo como um forte opositor da condição homossexual. Mas há que suavizar este juízo. Paulo, falando desde a Torá judia, singulariza em Rom 1, 26-27 a homossexualidade unicamente para a rejeitar como “contra a natureza”. Mas nessa tradição, como em muitas outras, a natureza sexual estava determinada pela biologia, o corpo e os genitais. Para muitas pessoas hoje em dia, contudo, a natureza sexual está determinada pela química, o cérebro e as hormonas. Deste modo, Paulo nunca esteve frente á pergunta que a que nós devemos responder actualmente (J. D. Crossan, J. L. Reed, En busca de Pablo, Estella, Verbo Divino, 2006, 453). Que acontece se se constata que a homossexualidade é tão “natural”, para alguns, como o é a heterossexualidade, para outros? Em todo o caso, não podemos utilizar Paulo para responder a uma pergunta que Paulo, no seu tempo e na sua cultura, jamais pôde fazer, nem suspeitar do problema que essa pergunta oculta.

Por isto, parece mais razoável fazer-se esta outra pergunta: aceitou a Igreja, em séculos anteriores e em alguns casos, o matrimónio homossexual?

O Direito romano, que a Igreja aceitou e fez seu, reconhecia duas definições de matrimónio. Assim o indicam os manuais de Direito romano (Antonio Fernández de Buján, Derecho Privado Romano, Madrid, Iustel, 2008, 134-135). Uma destas definições encontra-se já em Ulpiano (Digesto, 1. 1. 3) e foi desenvolvida por Modestino (D. 23. 2. 1), que entende o “matrimónio, coniunctio maris et feminae, a união do homem e da mulher”. A outra definição está também em Ulpiano (D. 24. 1. 32. 13): “Não é a união sexual o que faz o matrimónio, mas o afeto, affectio, matrimonial”. Como é lógico, o ”afeto matrimonial” pode-se dar e viver ao mesmo tempo entre pessoas de diferentes sexos como entre pessoas do mesmo sexo. É verdade que a definição de Modestino (“união de homem e mulher”) é a que prevaleceu no Decretum de Graciano e, daí, passou ao Direito Canónico. Contudo, a segunda das definições mencionadas ficou também recolhida nas Instituciones de Justiniano (A. Fernández de Buján, o. c., 135). De maneira que onde se põe o acento, em ambas definições, é “no projeto de vida em comum” (o. c., 135). É evidente que tal projeto se pode realizar tanto entre pessoas de distinto sexo como entre pessoas do mesmo sexo.

Em todos os outros aspetos - e isto é fundamental -, esta legislação teve que se traduzir em factos. Ou talvez o que aconteceu é que esta legislação era a que correspondia a factos que se viviam já na Idade Média. Isto é o que demonstra o estudo de John Boswell, “Os casamentos de iguais” (Barcelona-Madrid, 1996). A tese da obra de Boswell é que os homossexuais existiram na sociedade medieval ocidental, sem serem perseguidos de forma significativa, existindo também uma subcultura gay que era tolerada. A partir do século XIII, acentua-se a tendência para a uniformidade nas sociedades cristãs europeias e o fortalecimento das autoridades tanto religiosas como civis, coisa que se pôs de manifesto na perseguição contra os albigenses aos que se acusava de praticar a sodomia e de cometer delitos “contra natura”. Além disso, Boswell demonstra que existiam rituais para a celebração da união matrimonial entre pessoas do mesmo sexo. A oração destes rituais matrimoniais dizia: “Bendiz os teus servos N. e N., não unidos pela natureza... E concede-lhes amor recíproco e que permaneçam livres de ódio e escândalo...” (John Boswell, o. c., 490-491; cf. Javier Gafo, “Cristianismo y Homosexualidad”, en Javier Gafo (ed.), La homosexualidad: un debate abierto, Bilbao, Desclée, 3ª ed., 1998, 189-222).


6. Reflexão final

É evidente que a instituição familiar é a base sobre a qual se sustem a firmeza e a consistência do tecido social. Uma sociedade na qual a família se desestrutura e se rompe é uma sociedade que se autodestrói. Numa sociedade assim a violência desata-se até limites que não imaginamos. Pelo contrário, nas piores circunstâncias de crise social, se a família é sólida, a sociedade sustem-se e mantem as pessoas e as instituições. Vimo-lo na crise económica e política da Europa. A unidade familiar foi decisiva para manter uma ajuda e uma proteção segura àqueles que estão no desemprego e, em geral, aqueles que se viram em dificuldades. É bem conhecida a ajuda que prestaram os reformados aos filhos desempregados, às crianças, aos enfermos, etc.

É evidente também que a família tradicional está a evoluir. É um facto que o elemento determinante da família já não é o matrimónio, mas o casal. E o fator decisivo, para a manutenção do casal, é a comunicação baseada na relação pura (Anthony Giddens, o. c., 73-75). Trata-se da relação “baseada na comunicação emocional”. A relação que se baseia naquela forma de comunicação humana na qual “entender o ponto de vista da outra pessoa é o essencial” (o. c., 75). Insistir neste ponto, mantê-lo e enriquecê-lo, tudo isto é muito mais importante que resolver os problemas teológicos tradicionais da família. Problemas que foram apresentados por teólogos solteiros. E agora são de novo os solteiros os que pretendem resolver os problemas que eles apresentaram e problemas que os clérigos solteiros lhes meteram na cabeça aos laicos.

Sejamos, pois, respeitosos todos, uns com os outros. E, em lugar de discutir questões que não vão a resolver os verdadeiros problemas que hoje têm tantas famílias, sejamos honestos, todos. Reconheçamos as nossas limitações. E ponhamo-nos a procurar as verdadeiras soluções.

 

 

Texto original: aqui.

Tradução: Aníbal Liberal Neves.

06 de Abril, 2015

DUAS FAMÍLIAS HOMOPARENTAIS CRISTÃS: REFLEXÕES E EXPERIÊNCIAS.

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

Carlos Osma (CO): Grávidas! Felicidades às duas. Suponho que o caminho para aqui chegar não começou só há uns meses. Quando planeaste pela primeira vez que querias ser mãe? Imaginaste naquele momento que partilharias a maternidade com outra mulher?

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 Esther Baruja (EB): Obrigado! Kati e eu estamos muito contentes. Começámos a pensar ter filhos desde que começámos a nossa relação há 10 anos, mas nessa altura não falávamos de gravidez mas de adoção – que algum dia ainda desejamos fazer. Com o tempo fomos recolhendo mais informação sobre a gravidez com dador, primeiro em Buenos Aires onde vivemos uns anos e onde contactámos com uma clínica de fertilidade e um banco de esperma pela primeira vez.

Sempre gostei de crianças, sempre quis ter filhos/as próprios, nunca, contudo, estive muito de os querer parir! (ahah). Antes de estar com Kati nem sequer imaginava uma vida possível fora do armário, a questão da maternidade estava simplesmente fora mesmo dos meus próprios sonhos.

E para ti Carlos e para o teu marido, como nasceu em vocês a ideia de ter filhos/as?

CO: A verdade é que creio que sempre dei por certo que algum dia teria filhos, imagino que nascer numa família numerosa tem muito a ver com isso. Quando aceitei a minha homossexualidade, pensei que renunciava não só à família que tinha, já que pensava que não me aceitariam, mas também à que poderia formar no futuro; refiro-me a enamorar-me e ser pai. Ser homossexual, limitava-me e situava-me noutro espaço que não era o da família e do amor, mas o da solidão e do sexo esporádico.

Mas essa ideia durou pouco, no final foi-me impossível renunciar à possibilidade de conhecer alguém e enamorar-me, não pude tão pouco deixar de criar uma família onde a biologia não fosse o mais importante. Não creio que seja a opção correta, nem a melhor, nem a que te faz melhor pessoa, nem a que todo o mundo deve seguir… mas é a opção que a mim me faz feliz. Tenho um marido maravilhoso e duas filhas estupendas… não acreditei no discurso que me marginalizava, pelo que não pude seguir as suas normas.

Diferente da nossa experiência, no vosso caso a biologia joga um papel diferente, a tua esposa será a grávida. Como vos posicionais sobre esse tema? Credes que isso pode ser um elemento positivo, negativo ou não lhe dais nenhuma importância? Suponho que já sabeis que o mundo necessitará saber quem é a “mãe de verdade”.

EB: Uma ou outra pessoa perguntou “quem é a mãe” como dizendo que só quem gera a criatura é a verdadeira mãe, felizmente a maioria das pessoas à nossa volta assimilou a ideia de que as duas somos mães, ainda que seja só uma a ficar grávida. Talvez se deva a que em Chicago, o lugar onde vivemos, as adoções são vistas com muita naturalidade assim com as famílias diversas de duas/dois mães/pais onde não existe o laço biológico em um ou em ambos os casos. Sou originariamente do Paraguai, América do Sul, e estas realidades também existem aí, mas não existe o mesmo tipo de transparência no sentido de que não se fala do assunto abertamente justamente pela crítica e a possível rejeição. No nosso caso particular, estando fora do armário com muita visibilidade e falando/escrevendo sobre a nossa experiência talvez seja mais factível que realizem comentários acerca da conformação da nossa família, de forma negativa ou positiva.

Kati e eu falámos muito sobre os nossos papéis de mãe grávida e mãe não-grávida. Chegámos a conclusões interessantes sobre a nossa própria relação nestas discussões. Primeiro que a decisão de ter um filho/a foi das duas, nenhuma de nós o teria feito só porque no nosso caso específico necessitamos uma companheira para realizar este projeto, o qual não significa que não apoiemos às pessoas solteiras que decidam ter filhos. Então, desde o início este/a futuro/a bebé é nosso/a, não só da que o/a gera no seu ventre. É um projeto de amor das duas.

Por outro lado, estamos conscientes de que perguntaram não só “quem é a mãe”, mas também “quem é o pai”. Entendemos que ainda na mentalidade de muita gente a família é concebida somente com o componente de identidades de género binárias – homem e mulher, ou seja família quer dizer: “papá, mamã, que procriam filho e filha”, nesta ordem de importância. Este modelo binário de revista nunca representou a realidade das sociedades onde as famílias sempre estiveram diversamente conformadas (avós/avôs, tias/os, padrinhos/madrinhas, amigos/parentes afastados criando filhos/as próprios e alheios, assim como de pessoas sem vínculo biológico que decidem ser família sem que existam crianças pelo meio).

No nosso caso não há pai mas dador anónimo. O que há são duas mães iguais em responsabilidades e em direitos legais. Enquanto falamos mais abertamente sobre as nossas realidades os estigmas ir-se-ão desmantelando e chegará um dia em que seja comum visualizar distintos tipos de famílias e será plenamente aceite socialmente o que há muito existe.

E conta-me, como respondem a essas perguntas?

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 CO: Poderia contar-te algumas histórias. Recordo por exemplo que quando a minha filha Natália era pequena costumava levá-la comigo ao mercado e a mulher que nos atendia sempre me dizia: “a tua filha tem os teus olhos, pareceis-vos muitíssimo”. Eu não entrava em explicações até que um dia Manel, meu marido, veio connosco e a senhora quase cai ao chão de assombro quando Natália lhe apresentou o seu outro pai. Noutra ocasião, entramos numa loja e a empregada, muito mal-educada perguntou à nossa filha qual era o “pai de verdade”… Natália não compreendia nada, e um pouco surpreendida acompanhou-a até onde nós estávamos e disse-lhe: “eles os dois são os meus pais de verdade”. Também nos ocorreu uma vez uma situação um pouco comprometida, mas com a que nos rimos muito quando a recordamos: convidaram-nos para o aniversário de uma menina que não conhecíamos, quando chegámos apresentaram a Natália e explicaram-lhe que nós eramos os seus pais. Nesse momento a menina começou a chorar desconsoladamente porque ela só tinha um pai. A sua mãe e o seu pai estiveram um bom tempo a consolá-la.

Mas se aprendemos alguma coisa nestes seis anos, é que o mais importante não é o que os outros pensam sobre a nossa família, mas proteger as nossas filhas dos ambientes que ainda não são benéficos para elas. E para tratar de o conseguir fizemos duas coisas que cremos importantes. Por um lado tentamos procurar sempre ambientes seguros para elas, controlar os espaços onde se movem (escolas, atividades extracurriculares, amizades…) e sermos nós os que “tiremos do armário” a nossa família. Na realidade é nossa obrigação fazê-lo, não a sua. Uma das decisões mais difíceis neste sentido foi romper a relação com familiares que não aceitavam realmente o nosso modelo familiar.

Em segundo lugar pensamos que é importante que as nossas filhas não vivam só das nossas explicações, dos nossos relatos, mas que entrem em contacto com modelos familiares como o seu, e com outros modelos que lhes permitam ver uma grande diversidade. É por isso que fazemos parte de uma associação de famílias lésbicas e gays.

Quando lhes explicamos que existe diversidade na forma de construir uma família ou na forma de a configurar, sempre têm modelos próximos para o entender. Têm amigas e amigos com dois pais, ou com duas mães, ou com uma, ou com um pai… que nasceram por sub-rogação, foram adotadas, acolhidos… entendem que a biologia só é uma possibilidade mais quando se fala de família. Foi há muito pouco que Natália nos disse que tinha dado conta que existem menos famílias formadas por dois homens ou duas mulheres. Explicamos-lhe, então, que tinha razão, que se passava algo parecido como as pessoas esquerdinas (ela e Manel são esquerdinos) que são poucas… mas que em qualquer equipa de futebol de que se preze (ela gosta do Barça), sempre é necessária uma pessoa que vá corredor esquerdo.

O que gostaria, agora de te perguntar, não sei se o verificaram, é se o vosso modelo familiar pode trazer alguma mais-valia para a vossa/o futura/o filha/o. Vedes alguma vantagem ao facto de serdes duas mães?

EB: Que bom que tenham esse grupo de famílias lésbicas e gays! Na nossa igreja em Chicago temos vários modelos de famílias representados e se permanecemos nesta cidade procuraremos outros grupos que sabemos que também existem aqui.

Sobre a tua última pergunta, vejo a vantagem, por uma questão prática, de que sejamos duas pessoas apoiando-nos mutuamente para criar uma criança, contudo, não me apercebi que o género dos pais/mães seja uma vantagem per si. Sim, creio que a perceção que tem a sociedade sobre as mulheres e os corpos femininos é que a maternidade é um destino inevitável para nós e que indefectivelmente nos assenta bem. Por esse motivo talvez percebam que ter duas mães poderia ser benéfico para a criança, ainda que no imaginário coletivo está a ideia de que “mãe há só uma”, e esse é um mito idolatrado principalmente no Dia da Mãe, que é possível que seja em desafio com que lidar no futuro. Por outro lado, como somos duas mulheres, existem outras expectativas sobre nós, como poe exemplo o sacrifício que se espera das mulheres para serem consideradas boas mães.

Segundo a minha experiência os maiores obstáculos consistem em enfrentarmos os preconceitos da sociedade, seja quando saí do armário abandonado o ministério cristão estudantil em que trabalhava, assim como quando decidimos casar-nos, e agora ter um filho(a). Os defeitos que nos viam e os problemas que nos auguravam tinham e têm relação com a sua cosmovisão de heteronormatividade obrigatória para toda a humanidade. As suas supostas campanhas sobre a “defesa da família” estão baseadas em crenças sem fundamento relativamente à orientação sexual e às identidades de género.

Por isso não creio que o género dos pais/mães seja indício de ter filhos/as sãos, felizes e ajustados emocionalmente, mas que vezes sem conta as investigações sérias em Psicologia demonstram que o mais importante na família é o amor, o respeito e a solidariedade que se vive e demonstra entre os seus membros.

Só acrescentaria que a prova de que somos mulheres é que ambas somos feministas e desenvolvemos um sentido de solidariedade fraternal, e espero que possamos transmitir-lhe esse sentido de justiça e paz ao nosso/a filho/a seja qual for a sua identidade e expressão de género. O nosso modelo familiar já por si dá a volta às ideias fixas do modelo único de família patriarcal.

Como foi para vocês serem dois pais de duas meninas?

CO: Não há muito tempo a nossa filha disse-nos que quando for mais velha gostaria de ser lésbica, depois perguntou-nos se no acaso de que não fosse assim nós gostaríamos igualmente dela. Rapidamente fizemos-lhe ver todas as pessoas de que gostamos e são heterossexuais e explicámos-lhe que o que nós gostávamos é que ela fosse feliz, como casal (fosse de que género fosse) ou vivendo uma vida independente. A verdade é que depois, quando Manel e eu falámos sobre o que nos tinha dito, perguntámo-nos que teríamos feito para que ela pensasse que preferíamos que fosse lésbica… mas chegámos à conclusão de que estávamos agindo bem, porque nenhum menino ou menina da sua turma perguntou à sua mãe e ao seu pai se lhe quereriam de igual modo se se enamorasse por uma pessoa do seu mesmo sexo. Penso por essa razão, e por muitas outras, que as nossas filhas serão muito mais livres no momento de decidir, de ver o mundo da afetividade e da sexualidade, que a maioria das meninas e meninos da sua idade. Creio que serão meninas tolerantes e flexíveis.

Por outra parte, nós vivemos numa cidade cosmopolita e integradora como Barcelona, contudo, quando estávamos pensando em ser pais do que falávamos mais era de como as teríamos que proteger da homofobia. Na hora da verdade isto não foi o problema mais importante (ainda que seja evidente que ainda faltam muitas coisas urgentes para fazer, sem ir mais, longe nos centros educativos, nos meios de comunicação, etc), mas o machismo. Sei que há muitíssimas famílias heterossexuais que tentam não transmitir estereótipos de género que limitem os seus filhos e filhas, mas tal e como indicam todos os estudos (e a nossa experiência), as famílias heterossexuais continuam tendo um handicap muito grande neste ponto. As nossas filhas, contudo, não recebem uma educação sexista em casa, não pensam que por serem mulheres tenham que fazer uma coisa ou outra, ou que no futuro numa relação tenham um papel determinado a realizar. O nosso modelo familiar põe de lado todo esse discurso que atribui papéis e obrigações aos géneros. Vejamos o exemplo, somos dois homens que temos que partilhar todo o trabalho da casa, e a atribuição de tarefas não é decidida pelo nosso género, mas por acordo no qual esse elemento não tem nenhuma influência. As nossas filhas não só integram com naturalidade tudo isto, como, também, na realidade o transmitem de uma ou outra forma aos seus amigos e amigas… Sinceramente, penso que as nossas famílias aceleram, pelo menos nos seus meios, as mudanças sociais em temas como a igualdade de género.

És uma pessoa cristã com formação teológica e imagino que quererás transmitir a fé à vossa/o filha/o. Permite-me duas perguntas: Como colocas este assunto? Crês que as nossas famílias, a nossa experiência, podem trazer algo às igrejas?

EB: Sim, identifico-me como cristã, mesmo a Kati conhecia-a quando ela era missionária no Chile para o movimento estudantil associado à CIEE (Comunidad Internacional de Estudiantes Evangélicos), e em seguida quando começámos a nossa convivência em Buenos Aires colaborámos com CEGLA (Cristianos Evangélic@s LGBT de Argentina) e com a Fundación Otras Ovejas. Agora nos Estados Unidos estou no processo de ordenação pastoral com a Iglesia Unida de Cristo (UCC, siglas em inglês). La UCC é uma denominação que celebra o pluralismo e o ecumenismo assim como as relações interreligiosas e ao mesmo tempo continua sendo, primordialmente, uma instituição cristã.

Já me graduei no ano passado mas quis mencionar que no meu seminário, Chicago Theological Seminary, há alunos/as e professores/as que representam uma grande variedade de denominações cristãs e mesmo existem os/as que professam outras religiões, é assim que académicos muçulmanos e judeus dão aulas normalmente junto com os/as cristãos/ãs.

Definitivamente as nossas perspetivas expandiram-se muito desde os tempos em que fazíamos parte de igrejas conservadoras. E mesmo para honrar a tradição familiar de Kati que é de descendência judia, também estivemos presentes na Sinagoga. São situações que dentro da borbulha fundamentalista onde estávamos jamais nos teria ocorrido poder viver. Nesse sentido a procura de sentido das realidades com as quais nos enfrentamos pela nossa orientação sexual dentro da igreja cristã foi a que nos impulsionou a descobrir outras interpretações sobre a vida e a fé.

Ainda que seja inevitável que o cristianismo seja a constante experiência para a criança, faremos todo o possível para que o/a nosso/a filho/a tenha a possibilidade de poder estar exposto/a à diversidade de crenças e tradições e que tenha as ferramentas para decidir por si mesmo/a chegado o momento, não é minha intenção “transmitir a minha fé” porque não queria impô-la à criança só porque viverá comigo.

Uma das vantagens que temos é que a nossa igreja é muito diversa e fazemos parte de um movimento ecuménico e de relações entre distintos credos, muito ativo em Chicago que nos oferece muitas possibilidades de participação e diálogo.

Um dos contributos das nossas famílias para a igreja é que demonstrámos que as interpretações, por mais misericordiosas que soem e por mais oficiais que sejam, podem estar equivocadas. A homo/les/bi/transfobia enraizada e promovida a partir da fé perdeu a batalha cultural e com isso não digo que não exista e que não continue a magoar muita gente, mas que a perceção sobre o respeito pelos Direitos Humanos já incluem as comunidades LGBT em vários países Latinoamericanos e esse foi um grande passo na região. Ainda há muito por fazer no mundo.  

Igualmente as nossas famílias diversas e visíveis colaboram para que haja mudanças de mentalidade na restruturação dos modelos de família e renovam o conceito familiar para fazê-lo mais extenso e inclusivo. Felizmente, muita gente chegou a reconhecer e a aceitar os nossos modelos que podem ou não estar baseados na biologia. E isso é bom, não só para o sentimento de pertença familiar de casais do mesmo sexo com filhos e filhas, mas também para aquelas pessoas que o modelo binário heteronormativo (papá/mamã/filhos) deixava de fora como se estas não pudessem ser nem ter família por serem solteiras sem filhos/as, viúvas, divorciadas, jovens, idosas, com distintas capacidades e realidades diversas. A ampliação do conceito de família não criou a realidade porque essas e outras famílias já existiam/existíamos, mas para nós já era verdade que os nossos círculos de afeto, respeito, solidariedade e carinho sem laços biológicos são tão família como a do vizinho.

Qual é a posição da tua igreja, se é que frequentam alguma, no que diz respeito aos distintos tipos de família?

CO: Tanto Manel como eu crescemos em igrejas evangélicas conservadoras… De facto foi ali, num momento onde ambos nos sentíamos mais afastados desse tipo de espiritualidade, onde nos conhecemos. Chegou o momento em que era absurdo permanecer nesse ambiente, pelo que começámos a frequentar e a participar numa igreja de origem metodista com uma teologia liberal, socialmente comprometida e aberta ao diálogo tanto ecuménico como inter-religioso. De facto foi como um “balão de oxigénio” para a nossa fé formar parte dessa comunidade durante quase dez anos, temos grandes recordações; o dia do nosso casamento, por exemplo. Mas quando decidimos ser pais as coisas mudaram, pelo menos para nós. A nossa família teria sido uma mais dentro da comunidade, mas na realidade sem ser reconhecida de maneira oficial… essa foi a razão pela qual decidimos deixar de formar parte dela. Não podíamos educar as nossas filhas numa igreja onde a sua família não existe. Foi dura a decisão, mas também não creio que tivéssemos outra opção, A homofobia de baixa intensidade pode ser largamente mais prejudicial para as famílias LGBT. 

Pessoalmente penso que transmitir a fé faz parte da nossa responsabilidade como pais. É o que fazemos também quando as educamos dando-lhes valores, uma maneira de ver a vida e de a ela se enfrentar, etc… Além disso creio sinceramente que o cristianismo tem muitas coisas que pode fazer delas melhores pessoas, abri-las ao mundo e à transcendência e dar sentido às suas vidas. É evidente que também tem elementos perigosos que poderiam fazer-lhes dano; tentamos ser críticos e honestos. Sei que outras tradições religiosas, espirituais ou outras posições vitais podem dar-lhes muito, assim tentamos que não as vejam como inimigas. O respeito e o diálogo com quem pensa (não só é) diferente as pode enriquecer… a diversidade não é um perigo, mas uma oportunidade. Digamos que as educamos com uma visão aberta do cristianismo… depois lá decidirão elas se isso lhes serve, se têm que juntar ou tirar alguma coisa, ou se simplesmente necessitam de outras respostas de outros lugares. 

Faz agora três anos, começámos a reunir-nos em Barcelona um grupo de cristãos LGBT, daqui surgiu a Comunitat Protestants Inclusius Barcelona, da que fazemos parte e onde trabalhamos conscienciosamente para que muita gente da nossa cidade possa ter uma comunidade aberta onde viver a sua fé em liberdade, de maneira aberta e plena. Uma comunidade onde a diversidade é importante, também a diversidade familiar, não para excluir mas para partilhar, para crescer. E nesse projeto estão as nossas filhas connosco… acompanhando-nos e aprendendo. Nesta comunidade o que dá sentido à família é o amor, não que tenham sexos diferentes, o mesmo sangue, ou que haja um reconhecimento legal.

Gostaria de te fazer uma última pergunta antes de terminar: há uns dias o Papa Francisco definiu as famílias lésbicas e gays como uma “colonização ideológica” que procura destruir a família. Onde crês que se perderam? Porque crês que pessoas destacadas como ele são incapazes de ver o amor de Deus nas nossas famílias? Como é possível que não se alegrem da felicidade que tu e a tua esposa vivem neste momento?

EB: São palavras infelizes do Papa Francisco. Não nos fazem bem como sociedade já que reafirmam os preconceitos sobre as nossas famílias. Ele carateriza-se pela ambiguidade das suas posições no que diz respeito a assuntos controversos, às vezes soa muito progressista e dentro da mesma entrevista afirma todo o contrário ao anterior. Nos nossos ambientes evangélicos/protestantes temos também pessoas com outro tipo de discurso duplo, os famosos “nem frios, nem quentes”, que nos corredores e em reuniões privadas nos dão apoio, mas escondem-se quando mais necessitamos deles para mostrar uma figura pública do cristianismo mais humano, como o de Jesus (manifestações em “defesa da família”, congressos para “curar” gays).

Estas pessoas têm muito medo de perder as suas posições de privilégio nas instituições religiosas. Creio, principalmente, que é falta de amor ao próximo que os impede de proclamar uma voz profética em favor dos excluídos/as. Estão também os/as cristãos/ãs que crêem que as nossas orientações sexuais, identidades de género e relações de amor e afeto são intrinsecamente pecaminosas. Muitas vezes eles/as não ouviram o outro, mas repetem as teologias conservadoras que receberam nos seus templos como se fossem a única e possível interpretação dos textos bíblicos. Por isso creio que a educação e o estudo bíblico com todas as ferramentas hermenêuticas disponíveis são a chave para desmantelar a homofobia na igreja cristã. Conheci pessoas sem conhecimento suficiente sobre o tema que têm boa intenção ao pregar o arrependimento às pessoas LGBT, mas as suas ações causam muito dano e o sabem, mas preferem defender dogmas que defender a dignidade das pessoas.

Existe outro tipo de cristãos/ãs que tiveram a oportunidade de estudar outros pontos de vista, que leram e investigaram mas, mesmo assim negam-se a mudar de postura, recusam baixar do seu pedestal de suposta superioridade heteronormativa, rejeitam ver-nos como iguais em direitos, não nos reconheceram como seres humanos, mas como o “outro/a”, o inimigo, o “não-eu”.

Todas estas posições tentam desumanizar-nos, esquecendo que todas e todos fomos feitos à imagem de Deus, somos Imago Dei. Creio que a causa desta penosa situação é o facto de ignorar os dois mandamentos que resumem toda a lei, “amar a Deus e amar o próximo como a si mesmos/as”.

Creio que eu também o esqueço às vezes e não reconheço que também fui chamada para os/as amar como a mim mesma. Ainda que faça a ressalva que mesmo na minha indignação perante a injustiça que a comunidade LGBT sofre, jamais tentaria negar-lhes direitos, humilha-los/as, excluí-los/as, em ameaça-los/as pela sua forma de pensar e/ou atuar diferente de mim. Espero que mais e mais pessoas conheçam as nossas famílias e possam ver que não somos de outro mundo, mas que somos tão iguais e tão diferentes como cada habitante deste formoso e diverso planeta. Que o que nos une é a nossa humanidade comum.

 Como vês a situação da comunidade LGBT na Igreja cristã na tua cidade e país? Dão-se as mesmas dinâmicas?

CO: Bom, partilho cada uma das palavras de disseste… nas igrejas evangélicas espanholas é dominante o discurso que nos rejeita, um discurso baseado em preconceitos, ignorância e falta de empatia. Vamos lá, um discurso completamente alheado do evangelho. Contudo, também é certo que nesse contexto tão adverso também há pessoas e comunidades que não se calam e se atrevem não só a negar o discurso oficial, mas também a acompanhar e ser acompanhadas por pessoas LGBT. Daqui simplesmente se aprende, daqueles que entendem que a justiça não tem que ver só com o que a eles ou a elas lhes ocorre, mas com o que ocorre às pessoas ao seu redor.

De qualquer forma tornamo-nos conscientes do quão perigosas são as abordagens cristãs que estão baseadas numa suposta possessão da verdade. Perigosas não para a maioria da sociedade que os vê como radicalizados, mas para as próprias comunidades evangélicas, já que aqueles que padecem as consequências dos discursos de ódio para com as pessoas LGTB são as pessoas LGTB que formam parte dessas comunidades, bem como os seus familiares e amigos. A maioria das pessoas evangélicas LGBT em Espanha continuam dentro das igrejas, muitas estão casadas com pessoas de sexo distinto, outras têm responsabilidades, etc… e interiorizaram um discurso que os castrou, por não repensar a “verdade absoluta” que defendem aqueles que têm medo, ou são incapazes, de enfrentar o evangelho com a realidade. Esperemos que pouco a pouco toda esta ideologia patriarcal caia como as muralhas de Jericó e o evangelho possa entrar de novo dentro destas igrejas que por agora apostam pela lei e tradições centradas na normativa hetero. Por esta razão, umas e outras, continuaremos a fazer soar as trompetas à sua volta.

Muito obrigado, Esther, pelas tuas perguntas e respostas, foi um prazer conversar contigo. Que a gravidez corra bem e que possais disfrutar dento de meses de uma das experiências mais gratificantes e por sua vez complicadas a que mulheres e homens nos enfrentamos: ser mães e ser pais.

EB: Obrigado por esta conversa, Carlos. Abraços!

 

Artigo original: aqui.

Tradução de Aníbal Liberal Neves