Jesus e a Homossexualidade: O Centurião Romano
O caso do centurião de Cafarnaum pode ser o único registro bíblico entre Jesus e um homossexual. O milagre da cura do servo do centurião encontra-se narrado por Mateus, Lucas e João. Cada um dos evangelistas narra a história com diferentes nuances, cada uma delas com detalhes bastante reveladores e complementares.
No relato de Mateus (8,5-13), o comandante romano referiu-se ao seu escravo empregando a palavra grega pais. Este é um termo bastante intrigante quanto ao seu sentido. A palavra grega pais tem vários significados: criança (Mateus 21,15), menino (Mateus 17,18) e servo (Mateus 8,6). Neste último caso, embora num sentido pouco comum, pode ser traduzida e interpretada como um escravo jovem cujo proprietário mantém para favores sexuais. O termo pederastia [1] deriva do mesmo radical (paiderastia). As várias traduções suprimiram as possíveis conotações sexuais do termo utilizando as expressões “meu servo”, “meu empregado”. A versão ARA [Almeida Revista e Atualizada] utilizou uma expressão um tanto curiosa: “meu rapaz” (v. 8). Tais relações com conotações sexuais eram bastante comuns no Império Romano e, embora condenadas pela tradição judaico-cristã, a sociedade romana tolerava-as. É um facto que havia uma componente abusiva em tais relações (vide nota sobre pederastia), mas este não parece ser o caso do centurião, já que Lucas acrescenta que o servo lhe era muito querido (Lucas 7,2), o que explica o esforço do comandante em buscar a ajuda de Jesus. Lucas também utilizou a palavra entimos, termo que denota, também, afetividade e intimidade. O fato de o centurião não se ter ausentado de casa durante a doença do servo (Lucas 7,6) também reforça a possível relação afetiva entre eles, pois tal gesto sugere cuidado e proteção.
O relato de Lucas refere-se ao servo como doulos, termo mais específico que significa servo, porém sem uma conotação de escravidão [2]. Tal acepção reforça o conceito de que não se tratava de um escravo comum. O texto de João coloca-o como filho do comandante, o que reforça os laços afetivos entre eles, já que um filho desfruta de tratamento e consideração superior à relação senhor/servo (João 4,46). Porém, é improvável que se trate de um filho, pois o termo doulos usado por Lucas descarta tal interpretação.
Lucas também afirma que ele havia construído uma sinagoga (7,5b), portanto o centurião era um homem rico e poderia substituir facilmente o servo a qualquer momento, bastaria comprar outro. As motivações do centurião são, antes, afetivas ou, mais provavelmente, homoafetivas. O mesmo texto indica que, possivelmente, era um homem temente a Deus, porque, além de construir a sinagoga, Lucas acrescenta que ele amava a nação de Israel (7,5a). Jesus conhecia o coração e a vida íntima daquele homem, entretanto, ele não condena a sua relação, antes, elogia a sua fé, curando o seu servo. É interessante mencionar, que Jesus contrariou muitos preceitos da tradição religiosa e cultural judaica, quebrando paradigmas e revelando uma nova realidade aos seus seguidores.
1 A pederastia era um fenómeno cultural da Grécia antiga, com finalidade didático-pedagógica, consistindo numa relação entre um homem mais velho (no grego erastes) e um jovem adolescente (eromenos). As famílias menos abastadas entregavam os seus filhos aos cuidados do erastes, cuja função era a de ensinar ao jovem rapaz valores ligados à masculinidade e às funções do homem na cultura grega. Era comum, como parte dessa relação mestre/aprendiz, a prática da relação homogenital em que o jovem adolescente desempenhava um papel passivo e seu tutor, um papel ativo. Quando o jovem ultrapassava a adolescência, cuja marca era o nascimento de barba, a relação pederástica cessava. A cultura romana, entretanto, não absorveu tal costume, antes, muitos homens cultivaram o hábito do abuso sexual a jovens escravos. Essa prática abusiva ainda encontra as suas raízes na antiga tradição da supremacia masculina do papel ativo, não sendo admitidas tais relações entre homens da mesma camada social, em virtude da noção de superioridade e inferioridade implícita nessas práticas.
2 Dicionário Vine, CPAD, 2006, pág. 991.
Texto original: Alexandre Feitosa
Adaptação: José Leote