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Associação RUMOS NOVOS - Católicas e Católicos LGBTQ (Portugal)

Somos católic@s LGBTQ que sentiram a necessidade de juntos fazerem comunhão, partilhando o trabalho e as reflexões das Sagradas Escrituras, caminhando em comunidade à descoberta de Deus revelado a tod@s por Jesus Cristo.

08 de Dezembro, 2018

Há centenas, milhares de sacerdotes homossexuais que levam vidas santas

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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Há homofobia na Igreja? Mais ou menos do que nas demais instituições?

Lamentavelmente, há muita. A maior parte provém do medo: o medo em relação às pessoas que são diferentes; o medo em escutar algo novo e, frequentemente, o medo da própria sexualidade complicada. Provavelmente há mais homofobia na Igreja católica do que em outras instituições porque alguns católicos sentem, erradamente, que a sua religião a justifica. Contudo o ódio nunca é justificado pelo cristianismo. Efetivamente, Jesus amava sobretudo os mais marginalizados. Contudo, esse ódio vai diminuindo à medida em que cada vez mais pessoas são abertas em relação à sua sexualidade. E à medida que cada vez mais pessoas se abrem ou saem do armário, as pessoas começam a reconhece-los como seus irmãos e irmãs, tias e tios, sobrinhas e sobrinhos e amigos e colegas de trabalho. O encontro diminui o medo.

 

 

É justo que o Vaticano proíba a entrada nos seminários a jovens com tendências homossexuais?

O Vaticano afirma que homens com «tendências homossexuais profundamente enraizadas» não devem ser admitidos nos seminários. Porém, os bispos têm interpretado isto de três formas: Primeiro, nenhum homem gay deveria entrar. Segundo, nenhum homem para o qual a sua sexualidade seja a parte mais importante da sua personalidade deveria entrar. Terceiro, nenhum homem gay que não consiga viver celibatariamente deveria entrar. Tudo o que posso dizer é que conheço muitos sacerdotes gay que levam vidas santas na igreja.

 

 

Os padres e bispos gay (ao que parece muitos) são capazes de manter os seus votos de celibato?

Sim, por que razão não deveriam de o ser? Ser gay não significa que se tem de ser sexualmente ativo. Temos de ser claros: é simplesmente falso afirmar que os padres gays não podem viver o celibato. A melhor prova disto é o facto de que há centenas, se não mesmo milhares, de padres gays celibatários e membros castos de ordens religiosas que levam vidas dedicadas de serviço a Deus e à igreja.

 

 

O que pensa da afirmação de que a homossexualidade é a principal causa do abuso sexual de crianças na Igreja?

É preciso afirmar que a maioria dos casos se refere a homens predando rapazes e jovens. Contudo, isto não significa que todos os sacerdotes gays, ou mesmo a maioria dos sacerdotes gays, sejam abusadores. É um falso argumento. Somente porque alguns são isso não significa que todos ou a maior parte o sejam. Para além disso, a maior parte dos casos de abuso ocorre no seio familiar e ninguém afirma que todos os homens heterossexuais ou que todos os pais ou que todos os homens casados são abusadores. Novamente, é um estereotipo perigoso que precisa ser desmontado.

 

Autoria: C. Doody
Tradução (do inglês) e adaptaçao: José Leote (Rumos Novos)

05 de Dezembro, 2018

Para a Igreja Católica, Tudo o que Sou é Pecado

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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O Papa Francisco não pode tirar a dignidade aos católicos LGBT.

 

O popular Papa Francisco alterou finalmente as suas palavras fazendo-as corresponder à sua inação. O pontífice do «Quem sou eu para julgar?» exprimiu agora uma preocupação e uma reserva sérias acerca do lugar dos gays no sacerdócio. Com aquelas cinco palavras o Papa deu tanta esperança à comunidade gay: significava que o Papa e a Igreja aceitavam os gays. Porém, o Papa enganou toda a gente. Com as suas últimas observações, contidas no próximo livro de Fernando de Prado «A Força da Vocação», o Papa realça a eventual vida dupla dos sacerdotes gays, mas quando fala acerca da «força das vocações» não é capaz de ver a tendência nas vidas duplas dos sacerdotes pederastas ou heterossexuais.

 

Ao mesmo tempo, o Papa Francisco nada diz acerca da força das vocações das mulheres em exercerem o ministério. O caminho que segue já está repisado e é aquele que diz a 1,2 biliões de católicos alguma coisa acerca da natureza do seu papado surgido do nada: as suas palavras e ações curvam-se agora em direção às políticas dos prelados conservadores (também conhecidos como o clero das altas fileiras).

 

Desde a minha partida da Sociedade de Jesus, nenhum jesuíta abertamente gay foi ordenado.

 

O que mais me magoa é que desde a minha saída da Sociedade de Jesus, a Igreja Católica não se moveu um milímetro na forma como celebrar e honrar o ministério, os relacionamentos ou a parentalidade dos católicos gays e lésbicas. Mesmo agora os seminaristas gays no armário continuam a ser ordenados por dioceses e instituições religiosas por todo o mundo. Se revelam a sua homossexualidade, são convidados a sair do seminário.

 

Conheci a homofobia na igreja, incluindo a suposição de que os sacerdotes gay enganam quanto aos seus votos. Poderia ter ficado como sacerdote desde que tivesse feito de conta que era heterossexual.

 

Desde que o Papa Francisco proferiu as suas mais famosas cinco palavras «Quem sou eu para julgar?», acerca dos sacerdotes gay, a Igreja Católica ficou mais desconcertante, enviando para o exterior tantos sinais contraditórios que a maioria dos católicos estão totalmente confusos sobre em que ponto está verdadeiramente a Igreja em relação aos gays católicos. Porém, eu sei a minha teologia: o ensinamento da igreja sobre a homossexualidade não se alterou. Os gays encaixam na rubrica dos desorientados, dos mórbidos e dos imorais. Quando o Papa Francisco afirmou que não há inferno, ele não poderia saber que a minha própria família católica me tinha informado que eu iria arder no inferno, quando tentei assumir-me como um jovem católico gay em 1993.

 

Há várias razões para a Igreja Católica não ter avançado na doutrina referente à homossexualidade.

 

Primeiro, para abraçar os gays, para celebrar o seu ministério, relacionamentos e parentalidade, a Igreja católica teria de (a) ver o Papa falar ex cathedra (com a total autoridade do cargo) sobre este assunto, desta forma determinando um ensinamento da Igreja de que os casais do mesmo sexo podiam casar, ou (b) um Concílio do Vaticano teria de ser convocado e onde um conjunto de prelados homens podiam escrever sobre o tema da homossexualidade no mundo da igreja do século XXI e fazerem depois com que o Papa aprovasse o documento.

 

Segundo, os bispos e os cardeais não conseguem resolver dilemas morais bem menos desafiantes, por exemplo, a Igreja não consegue desenvolver uma nova teologia Eucarística que permita aos católicos divorciados receberem a comunhão, o corpo e sangue de Jesus. Se a igreja não consegue resolver este assunto, como é que pode avançar para a resolução de assuntos teologicamente mais prementes como permitir que os gays e as lésbicas tenham relações sexuais ou que participem no sacramento do matrimónio?

 

A Igreja católica ainda acredita que fala a verdade sobre a sexualidade humana. Isto é, apesar da «construção de pontes» dos católicos progressistas, a igreja não se equivoca: os gays que agem de acordo com a sua orientação sexual cometem um pecado sério e mortal e ao agirem assim afastam-se a si próprios da graça em direção à escuridão. Eles são os únicos a quem é pedido que façam mais, isto é, que sejam celibatários. A igreja vê-se a si mesma como o caminho para Jesus e, assim, para Deus. Em consequência, condena a homossexualidade porque esta é contra a lei natural.

 

No mundo secular ser-se gay é aceite, não como algo que está na moda, pois ninguém usa a sua sexualidade como um casaco de pele ou uns sapatos Prada (os últimos tão do agrado do Papa Bento XVI), mas antes como algo que intrinsecamente faz parte de si. No mundo secular sou uma pessoa boa e de confiança, nunca um pecador, mas no mundo da Igreja Católica tudo aquilo que sou é pecado - nem mesmo as célebres cinco palavras do Papa me poderiam reconciliar, de acordo com o dogma da Igreja Católica.

 

Sou um homem gay orgulhoso que representa Jesus. Sou inflexivelmente contrário a levar uma vida dupla, como alguns temeram que levasse devido a como Deus me fez à sua imagem e semelhança. Para a igreja, eu não poderia representar integralmente Jesus enquanto homem gay, mas não renunciarei a quem sou por ninguém, por nenhuma ordem religiosa or por nenhuma instituição. Entristece-me que a Igreja Católica veja os gays como fracos e que as suas vocações são inúteis. E se os sacerdotes gays dissessem finalmente «basta»? Quantas igrejas fechariam? Quantos ministérios seriam cancelados? A igreja e o Papa não fazem a mais pequena ideia quantos dos seus padres, pastores, bispos, cardeais, abades e papas são gays, a maioria deles vivendo vidas duplas de medo e pavor de que alguém descubra que são gays.

 

A força da minha vocação levou-me para longe da igreja, mas para minha maravilhosa surpresa, sou mais padre do que nunca!

 

Autor: Benjamin Brenkert
Tradução (do inglês) e adaptação: José Leote (Rumos Novos)

 

04 de Dezembro, 2018

4 problemas com as declarações do Papa sobre a homossexualidade

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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Quando se iniciou o pontificado de Francisco parecia que a Igreja católica teria como responsável alguém conciliador com setores que tradicionalmente tinham sido marginalizados pela Igreja católica. Os comentários sobre «quem sou eu para julgar» respeitantes aos homossexuais que decidem aproximar-se de Deus, o apelo da Amoris Laetitia em não discriminar os homossexuais e o apelo à reintegração dos divorciados na vida eucarística pareciam dar sinais de uma mudança.

 

Contudo, com o passar dos anos ficou claro que Francisco não era o «papa progressista» que alguns meios de comunicação elogiavam. Em particular, os seus comentários sobre a comunidade LGBT nunca se afastaram daquilo que a doutrina católica assinala no Catecismo: «a Tradição sempre declarou que "os atos homossexuais são intrinsecamente desordenados"... [os atos homossexuais] não podem, em caso algum, ser aprovados ... [os homossexuais] Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar devido à sua condição... As pessoas homossexuais são chamadas à castidade... podem e devem aproximar-se, gradual e resolutamente, da perfeição cristã».

 

Esta semana o tema da comunidade LGBT e a sua relação com a Igreja Católica volta a estar nos meios de comunicação social graças às palavras que o Papa Francisco transmitiu a Fernando Prado Ayuso, missionário claretiano, para um livro entrevista sobre o Pontífice. As declarações feitas pelo líder da igreja são bastante problemáticas já que, ainda que se centrem na situação específica de sacerdotes homossexuais, podem ter consequências negativas na comunidade católica LGBT e particularmente nos jovens que estão em processo de sair do armário perante as suas famílias.

 

 

1. Perpétua a ideia de que ser homossexual é estar doente...

Na entrevista o papa afirma que «quando há candidatos com neuroses ou desequilíbrios fortes, difíceis de poderem ser ultrapassados, mesmo com ajuda terapêutica, não há que os aceitar, nem no sacerdócio nem na vida consagrada». Para acrescentar de seguida que «temos de cuidar que sejam psicológica e afetivamente sãos. A questão da homossexualidade é muito séria. Há que discernir adequadamente desde o início, com os candidatos, se for esse o caso».

 

O modo como Francisco se refere às pessoas homossexuais parece sugerir que acredita que estes estão doentes e, inclusivamente, que tal «doença» é provocada por um forte desequilíbrio e, em alguns casos, está para além de qualquer ajuda terapêutica.

 

Este último ponto é o mais grave, já que ao equiparar a orientação sexual com uma doença mental corre-se o risco de incentivar que pais de família procurem «corrigir» os seus filhos através das terapias de reconversão, as quais já se demonstrou podem ter graves repercussões na saúde mental das pessoas. Num enquadramento em que o sair do armário continua a ser um processo difícil, as declarações do Papa podem dificultar ainda mais a situação em sociedades predominantemente católicas.

 

 

2. ... é sinónimo de promiscuidade...

«Aos padres, religiosos e religiosas homossexuais, há que exortá-los a viver o celibato de forma integra e, sobretudo, que sejam completamente responsáveis... É melhor que abandonem o ministério ou a sua vida consagrada em vez de viverem uma vida dupla», afirma. Esta é uma frase que poderia bem referir-se às referências ocasionais a orgias gay nas quais participam membros do clero; às revelações que o próprio clero faz sobre situações que se apresentam nas suas dioceses (e que menciona na entrevista), mas poderia igualmente referir-se à ideia que se tem da promiscuidade e devassidão que, algumas vezes, se associa à comunidade LGBT.

 

 

3. ... e que não se é verdadeiramente gay, mas que é antes uma moda

«Nas nossas sociedades parece inclusivamente que a homossexualidade está na moda e essa mentalidade, de algum modo, também influencia a vida da Igreja», declara algumas linhas mais abaixo o Pontífice. Esta frase, conjuntamente com o que afirmou acerca da «ideologia de género» mostra o medo que existe dentro da Igreja de que as ideias liberais tenham influência, a longo prazo, na doutrina.

 

Para além disso, falta referir o ridículo que é afirmar que uma pessoa se identifica, devido à moda, como sendo LGBT. Como se «para andar na moda» uma pessoa decida correr o risco de ser discriminada pela sociedade, rejeitado pela família e inclusive ser agredido.

 

 

4. Afasta parte dos fiéis

Há pessoas que são criadas na religião católica e tentam conciliar a sua vida espiritual com a sua orientação sexual nas suas várias formas. Há quem não deixe de acreditar no que a religião ensina, mas não pretenda participar na instituição; outros que aceitam ficar, mas não deixam de viver a sua vida com autenticidade; e alguns procuram honrar o que a doutrina indica, ser castos e dedicar a sua vida a Deus.

 

Para estes últimos, as declarações do Pontífice e a petição de não aceitar no ministério pessoas homossexuais são, a todos os títulos, prejudiciais, discriminatórias e injustas para o seu plano de vida e possível vocação. Quantos não sentirão, com estas palavras, que são discriminados e não são bem-vindos na Igreja?

 

Esta é a leitura que, para mim, se pode tirar das palavras do Papa Francisco, que sou um jovem homossexual criado na religião católica. Quer tenha sido ou não intenção da entrevista soar desta forma tão dura e caustica com os homossexuais que procuram servir a sua religião a partir do interior, a realidade é que os fragmentos do livro publicado e recolhidos pelos meios de comunicação social mostram uma clara homofobia e um tom muito menos conciliador e misericordioso do que aquele que se havia tido no passado.

 

Autoria: Marco Gómez
Tradução (do espanhol): José Leote (Rumos Novos)

01 de Dezembro, 2018

Às pessoas homoafetivas, o ombro de Deus!

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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Vou chamá-los aqui de Anthony e Araújo – embora estes não sejam os nomes deles. Não quero revelar a identidade dos dois. Anthony era padre e gay. Araújo era pastor pentecostal e gay. Uso o verbo no passado porque os dois se suicidaram.

 

Por ser celibatário, Anthony passou a vida perseguido por aquilo que tratou como um gigante. A sua homossexualidade o perseguiu e o aterrorizou desde sempre. Sem jamais ter transgredido a fronteira da castidade que impôs a si mesmo, o Pe. Anthony escreveu-me algumas vezes antes de se matar. Em todas, terminava dizendo: “Ricardo, estou exausto!” O seu desabafo, eu mal atinava na minha ingenuidade, era sinal de que aquele abatimento seria fatal.

 

Numa manhã de sábado, o Pe. Anthony leu dois contos de Tolstói, colocou um CD com música sacra a tocar, vedou janelas e portas do quarto com jornal, tomou trinta e duas cápsulas de um calmante potente, abriu a válvula da botija da gás e morreu.

 

Convivi com o pastor Araújo. No nosso breve tempo como colegas de ministério, suspeitei da sua homossexualidade. Porém, pouco depois, Araújo casou-se. O tempo passou rapidamente. Tive notícias que Araújo estabeleceu família – composta por dois filhos, uma filha e duas netas. Achei que tinha “visto” coisas demais na vida dele. Como Araújo se mudou com toda a família para outra cidade, e devido à distância geográfica, perdemos o contacto. Sempre que voltava a pensar no antigo companheiro, e na sua possível homossexualidade, voltava a achar que não passava de conjetura minha. Corrigia-me por julgá-lo e atribuía a preconceito meu o facto de pensar que talvez ele fosse homossexual.

 

Corrigi-me alguma vezes: Como posso ser tão suspeitoso? Só por que deteto certos trejeitos não tão masculinizados? Décadas depois de casado, a mulher do pastor Araújo saiu para fazer compras no supermercado. Era uma segunda-feira à tarde. Ao voltar, encontrou o corpo do marido pendurado numa corda suspensa na viga da cozinha. Ele aproveitou aqueles poucos momentos a sós para se enforcar. Vendo em retrospetiva, o casamento do pastor não passou de fuga. Como não havia, na sua realidade religiosa, como encarar a própria identidade, Araújo tentou viver uma vida dupla. Ele era gay e não achou maneira de fugir da sua identidade. O sofrimento durou anos e anos.

 

Numa tentativa desesperada de evitar escândalo, sem coragem de enfrentar os filhos com a verdade e diante do medo de rejeição, Araújo sucumbiu. Tudo lhe pareceu insustentável. Anos de mentira tornaram-se pesados demais. Na carta de despedida, Araújo pediu perdão pelo ato, que ele mesmo retratou como tresloucado.

 

A sua carta tornou-se pública – chegou às minhas mãos. Transcrevo um trecho:

 

Não consigo conviver com o inferno que criei para mim mesmo. Estou cansado de viver rasgado por dentro. Sempre fui homossexual. Consegui esconder de todos, menos de mim mesmo. Desesperadamente, procurei ver-me livre da condição em que nasci. Dediquei-me à família, à igreja, mas por dentro sempre sofri. A minha miséria perseguiu-me o tempo todo. Exausto, saio da vida para não magoar ainda mais quem me quer bem. Prefiro deixar de existir a continuar existindo como vivi.

 

As duas histórias que acabo de narrar são verdadeiras. Mudei apenas alguns detalhes para preservar os envolvidos. Não são hipotéticas e aconteceram bem próximas de mim. Como pastor protestante, tornei-me confessor e conselheiro de um padre. Fizemo-nos amigos, mesmo virtuais. Apesar de distante, acompanhei os desdobramentos da tragédia de um pastor protestante. Ambos sucumbiram mesmo inseridos nas suas respetivas tradições religiosas. Os dois não suportaram continuar no armário.

 

Continuei a ser provocado, a ser convocado, a ser interpelado neste tema. Os eventos não cessaram de bater à minha porta. Devido à pequena – mas barulhenta – repercussão dos meus posicionamentos sobre a comunidade LGBT, recebi outra mensagem. Esta devolvia-me aos primeiros anos como líder de uma comunidade cristã em Fortaleza. Bruno (não é o seu nome verdadeiro) escreveu-me:

Ricardo, parece que foi ontem, mas há precisamente mais de 30 anos, que nos reunimos naquela igreja de lona da Betesda na Aldeota em Fortaleza. O assunto da reunião era mais precisamente a minha questão homossexual […]. Aquela reunião definiria o restante da minha vida no exílio. De você, ou do seu ministério, recebi apenas repúdio, abandono e rejeição! Na ocasião você orou por mim e repreendeu o demónio da homossexualidade! Pelos vistos a oração nada serviu, pois continuo homossexual até hoje aos 56 anos de idade e com uma vida muito abençoada. Sou empresário no Rio de Janeiro continuo firme na fé graças a Deus, e, evidentemente, gay!

 

Depois de ter passado pelo trauma de dois suicídios, mais uma mensagem voltava a me abalar. Eu devia uma explicação ao Bruno; agora senhor, que um dia escorracei. Trinta, quarenta, cinquenta anos não apagam as nódoas que deixamos no passado. Enchi-me de coragem. Respondi. Modifiquei alguns detalhes da minha resposta para preservar a identidade do Bruno.

 

Caro Bruno,

Recebi o seu e-mail com sentimentos misturados. Primeiro: veio a sensação bumerangue. Acordei para uma realidade: tudo o que lançamos ao vento, cedo ou tarde, retorna. Segundo: ver-me cara a cara com uma situação constrangedora como a que você descreveu, e que fui protagonista, me deixa constrangido. Estou envergonhado, certamente.

 

Eu gostaria de lhe pedir perdão. Não posso, todavia. Por um simples facto: aquele Ricardo não existe mais. Ele desapareceu, juntamente, com a teologia que o formava, que incentivava o seu idealismo e alimentava, inclusive, o seu messianismo triunfalista.

 

Devo acrescentar que antes de mudar com respeito à homoafetividade, passei por um processo de despedida de uma teologia que me tornava, ao mesmo tempo, algoz e vítima. Acreditei, naquele tempo, em verdades que, mal sabia, me tornaram um homem inclemente e obtuso.

 

Aceitei interpretações literais da Bíblia, concebi a humanidade como caída e merecedora da ira de Deus. Defendi um Deus poderoso em detrimento à sua enorme bondade e graça. Coloquei o amor divino em segundo plano. Falhei em criticar aquela teologia de uma soberania que diz que o Todo-Poderoso tem tudo sob seu rigoroso controle. Essa doutrina é cruel, pois torna Deus corresponsável por barbáries e injustiças. Todas essas convicções se esvaíram lentamente no meu viver.

 

O processo foi longo, até que mudei sobre a homossexualidade. Olho para trás e tenho vergonha de ter acreditado que um homossexual está possuído. Você tem razão: sim, alguns precisam de tempo para que a verdade os alcance. Não sei precisar quanto tempo eu precisei, mas fui alcançado pela graça e pela verdade. A verdade tornou-se hospitaleira antes de ser sentenciadora.

 

E a ironia de tudo, Bruno, é que aquilo que fiz com você, expondo, julgando e discriminando, anos depois sofri na própria pele. A Betesda que você conheceu, rachou. Passamos por uma divisão belicosa. Quando comecei a me desfazer das vacas sagradas da teologia evangélica, um grupo se levantou contra mim, conspirou numa padaria da Avenida 13 de maio em Fortaleza. Eles prepararam um golpe para me expulsar da comunidade a que dediquei a vida; não conseguiram. Mas o bando levou a enorme maioria dos membros. Os conspiradores planejaram e executaram, um minucioso projeto de espalhar pela cidade que eu havia apostatado da fé e que negava o próprio Deus. Tornei-me um proscrito, comentado e vilipendiado nos salões de beleza, nos corredores das feiras-livres e por todos os lados. Fui atirado para um exílio parecido com o seu.

 

Resultado: pessoas inocentes da Betesda em Fortaleza padeceram enormemente. E eu ganhei o selo de apóstata.

 

Mas, esses traumas não foram impedimento para as mudanças que Deus vinha soprando em minha alma. Mudei, mudei e mudei. A Geruza, minha mulher, pós-graduou-se em sexualidade na Faculdade de Medicina da USP. Eu cresci bastante nesse tempo. Ela ajudou-me a entender um pouco mais sobre a complexidade dos comportamentos humanos. Tanto a Geruza como eu abandonamos expressões como pecado para descrever a identidade homoafetiva. Aconteceu mesmo eu dar uma entrevista para a revista Carta Capital sobre o estado laico. Sofri novamente. Tornei-me um constrangimento entre pastores. Perdi inúmeros amigos.

 

Insisto com você, Bruno: nem sei como pedir perdão. Posso, entretanto, dizer com letra maiúscula: Lamento. Lamento por ter abraçado aquela teologia, por ter militado naquele movimento chamado evangélico e por ter promovido uma religião que condena, exclui e prefere punir ao invés de compreender.

 

Se, de alguma forma, você se sentir livre para nos visitar na Betesda aqui em São Paulo, por favor, venha. Eu e a Geruza nos sentiremos felizes em o abraçar.

 

Abraço afetuoso,
Ricardo

 

Relato estas minhas experiências para tornar público o porquê das mudanças que experimentei. Se mudei a respeito da homossexualidade não o fiz devido a investigações conceptuais. Sofri, chorei e lamentei ao lado de pessoas que aprendi a amar. Notei o colossal preconceito e a desmesurada resistência de religiosos – católicos, protestantes e pentecostais – em admitir a homossexualidade como mera peculiaridade humana. Os homossexuais não escolheram ser homossexuais devido a traumas, pecado ou tendência à promiscuidade. No cipoal interior das pessoas, somos diferentes. Reagimos às pulsões sexuais distintamente e isso não implica em transgressão libidinosa.

 

Após passar por dores e traumas, não pretendo ver-me como um religioso de mente obturada e coração empedernido. Desejo me doar. Anelo ser ponte de diálogo. Quero que a minha comunidade dê acolhimento e compreensão a tantos que não encontram refúgio.

 

Os homossexuais, principalmente os cristãos, sofrem num mundo que os vê como pervertidos. Os que procuram seguir Jesus, padecem ainda mais: juízos, condenação e a imposição de voltar a adequar-se ao que é tratado como normal. Por não quererem romper totalmente com a família, berço religioso, convivem com reprovações e experimentam exclusões.

 

Muitos, por insistirem em não abrir mão da espiritualidade, são condenados a um inferno, duplamente, desesperador. Tragicamente, só encontram alívio no suicídio.

 

A igreja não pode fazer de conta que os homossexuais não existem. Jesus os acolheria. Nunca coube aos cristãos o papel de reprovar, condenar e hostilizar. À igreja, cabe acolher os que sofrem marginalização. Há lugar para todos no aprisco do Nazareno.

 

O padre Anthony ainda se lembrou de deixar um último bilhete endereçado a mim (já o destruí para preservar o segredo). Depois de ler o desabafo do sacerdote católico que eu aprendera a amar, chorei por vários dias. O tormento daquele homem dilacerou a minha alma. Tive vontade de gritar aos quatro cantos as palavras de Jesus: Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as vossas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve – [Mateus 11, 28-30].

 

O sofrimento dos homossexuais, vítimas de preconceito e chacota, deve ecoar em corações sensíveis. A dor que os aflige deve ser a nossa dor. Convém lembrar que integridade, caráter, fome e sede de justiça, e beleza humana, não dependem de identidade de género. Urge reconhecer que a Imago Dei (Imagem de Deus) não é privilégio de alguns. Todos e todas guardam fragmentos do divino. É tempo de oferecer o ombro aos que sofrem; e que nosso ombro seja o ombro de Deus.

 

Soli Deo Gloria

 

Autor: Ricardo Gondim
Adaptação: José Leote (Rumos Novos)