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Associação RUMOS NOVOS - Católicas e Católicos LGBTQ (Portugal)

Somos católic@s LGBTQ que sentiram a necessidade de juntos fazerem comunhão, partilhando o trabalho e as reflexões das Sagradas Escrituras, caminhando em comunidade à descoberta de Deus revelado a tod@s por Jesus Cristo.

30 de Novembro, 2020

Fé e Esperança Perante a Adversidade

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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Charlie Rodríguez, gay e católico, mostrou-nos maneiras novas e corajosas de seguir Jesus.

 

Vocação Negada

Nestes dias de confinamento sem dúvida que vivemos muitas e diversas emoções. A nível pessoal, o acontecimento que me marcou foi a partida física de Charlie, Carlos A. Rodríguez Hernández, com quem tive uma amizade - mais precisamente uma irmandade, que durou mais de 15 anos - dentro e fora da Comunidade Católica Vinho Novo. Hoje quero partilhar um pouco sobre ele.

Nascido num 27 de maio, Charlie era originário de Teziutlán, Puebla (México). Contava-nos que tinha sido educado pela avó e que era um menino travesso e respondão, sobretudo quando a comida não lhe agradava. Diziam-lhe para comer "porque havia crianças em África que não tinham nada para comer", mas ele respondia: "Então mandem-lha para eles." E em resposta davam-lhe "um aperto", ou seja, uma bofetada.

Assim foi crescendo e durante a juventude sentiu o chamamento para ingressar no seminário da Diocese de Papantka, situado em Teziutlán. Não restam dúvidas de que ele sempre sentiu o impulso de servir. Durante anos levou a cabo a sua formação, mas já muito próximo da ordenação sacerdotal foi afastado do seminário, com uma simples explicação de que "via-se que não tinha vocação". Isto causou-lhe muito dor emocional pelo que teve que frequentar terapia.

 

Novos Caminhos

Como acontece frequentemente em situações semelhantes, Charlie deparou-se com o desafio de como dar continuidade à sua vida pois os estudos realizados no seminário não eram válidos para outras profissões. Decidiu estudar engenharia e sempre procurou igualmente realizar outros estudos, incluindo os de locutor.

Charlie sabia da sua orientação sexual. Atraiam-no os homens; os "musculados", diria. Esteve sempre presente, desde o início, nas marchas do orgulho realizadas na Cidade do México, que procuram promover os direitos do coletivo LGBTIQ+. Calhou-lhe viver o período da repressão policial desse tempo, onde era intimidade e ameaçado.

- "Já sabemos onde vives, chaval, tu e a tua família. Por isso, não te armes em provocador".

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Vinho Novo: Vida e desafios de Comunidade

Ainda assim e apesar de tudo isto, ele continua na luta. Ainda que tenha tido um grande ressentimento contra a Igreja Católica enquanto instituição, mantinha-se em contacto com os seus companheiros do seminário e apoiava-os. Aí pelo ano de 2004 foi quando chegou à comunidade Vinho Novo, onde foi bem acolhido. No seu segundo ano na Vinho Novo, viveu a experiência do Retiro de Reconciliação entre a Sexualidade e a Fé. Em consequência da sua experiência durante esse retiro, Charlie decidiu começar a fazer parte da equipa de trabalho. Entusiasmava-o muito o projeto da comunidade, que era o projeto de Frei Jerry Cleator, OP. Noutro momento falarei aqui mesmo da vida e experiência extraordinária do Pe. Jerry.

No retiro seguinte Charlie já participou para partilhar a sua experiência do Deus de Jesus. Foi-lhe trabalhoso levar a cabo esta nova revisão da sua experiência. Encontrou-se novamente confrontado consigo mesmo e necessitou novamente de ter terapia. Apesar disso, deu um grande testemunho. Como acontece em todos os grupos humanos, houve alguns atritos dentro da Vinho Novo. Alguém argumentava que Charlie não era uma influência benéfica para a comunidade e que a afetava de forma negativa. Quando o Pe. Jerry partilhou comigo esta situação, recordei-lhe que o objetivo da comunidade era a inclusão e não a exclusão. Pedi-lhe que revisse a situação e escutasse as duas versões da história. Ao fim de um ano o Pe. Jerry pediu desculpa a Charlie por se ter deixado levar por bisbilhotices. Jerry Cleator via nele um grande exemplo de compromisso com a comunidade, mas, sobretudo, via nele uma mostra clara do seguimento de Jesus.

Desta forma, com muito entusiasmo Charlie continuou na nossa comunidade Vinho Novo, tanto mais que já contava com formação teológica e continuava não somente a se atualizar nesse domínio, mas também partilhando com os demais, particularmente na área que tocava ao coletivo LGBTIQ+. Neste sentido, apoiava na releitura das passagens bíblicas - aquelas que o Pe. James Alison chama "textos de terror" - e auxiliando a criar esquemas para celebrações nas quais toda a comunidade participava.

A nossa comunidade teve altos e baixos, como acontece frequentemente nos grupos. Havia momentos em que ele e eu desesperávamos, mas animávamo-nos mutuamente. Era o resultado da atitude de alguns membros que às vezes ficavam apáticos devido à marginalização constante por parte da Igreja católica, pois não conseguíamos encontrar espaços. Inclusivamente, em várias ocasiões pensou-se em mudar o nome da comunidade de "católica" para "ecuménica", porque frequentemente assistiam às nossas atividades pessoas de igrejas protestantes ou evangélicas que tinham experiência do Deus de Jesus. Estas congregações convidaram-nos a partilhar a nossa experiência - visto que muitas delas tinham apenas começado a trabalhar os temas LGBTIQ+ - e a participar noutros ambientes. Exemplos disso são as Igrejas pela Paz, os grupos da Comunidade Teológica do México, ativistas de lutas sociais - como o acompanhamento a pais dos 43 desaparecidos de Ayotzinapa, a familiares dos mineiros de Pasta de Conchos, ou solidariedade com pessoas afetadas e que foram violentadas em San Mateo Atenco devido à repressão. Dom Raúl Vera, o bispo de Saltillo, Coahuila, assistiu a alguns desses eventos e isso dava-nos alento. Sabíamos da sua constante solidariedade para com as comunidades de inclusão.  Isso enchia-nos sempre de esperança.

 

Teologia Crítica e a REDCAM

Uma coisa que causou muita alegria ao Charlie foi algo que se passou há dois anos, ao participar no Primeiro Encontro de Responsáveis Católicos Arco-Íris, na Cidade do México, na qual foi fundada a Rede Católica Arco-íris do México (REDCAM). Desta forma viveu-se o reencontro com irmãos jesuítas que passaram pela nossa comunidade e encontrámo-nos com irmãos e irmãs de outros grupos católicos LGBTIQ+. O Charlie sentiu-me muito entusiasmado por participar na REDCAM e alegravam-no as reuniões periódicas das diversas comunidades que a constituem.

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Charlie não queria fazer isto sozinho. Com frequência íamos tomar um café para partilhar o vivido nas nossas comunidades - Vinho Novo e Magdale - grupos que ao longo de 18 anos coincidiram no caminhar LGBTIQ+ católicos. Charlie desfrutava em participar na Magdala, onde se partilha a homilia com todos os presentes. No final, ele sempre dava outra volta à mensagem, confrontava-nos. Eu brincava com ele e dizia-lhe que era "o advogado do diabo". Contudo, não resta qualquer dúvida que nos fazia refletir. Era muito crítico, mas sustentava essa crítica com bons argumentos teológicos, uma vez que atualizava constantemente.

Ele aceitava que em certos pontos era um pouco misógino. Explicava que era devido a uma experiência que tinha vivido no seminário, já que numa aula lhe mostraram uma pastora negra celebrando a Eucaristia e, de acordo com a sua formação nesse momento, essa simbologia se tornou muito forte. Como era possível uma mulher negra estar a segurar a hóstia! E pôs-se a trabalhar esse tema. Nos últimos anos dedicou-se a estudar as mulheres nas primeiras comunidades cristãs; a ler teologia feminista e sobretudo a recuperar a figura de Maria Madalena, que agora é a patrona de ambas as comunidades. Ela é um exemplo de seguimento de Jesus. Charlie adorava escutar as teólogas feministas falarem sobre Maria Madalena. Era um tema que o maravilhava.

Há que dizer que Charlie era meio preguiçoso. Como qualquer de nós achava que aos domingos era "sacrilégio levantar-se antes do meio-dia". Contudo, era muito pontual nas nossas celebrações, que geralmente acontecem ao meio-dia. Com Magdala deu-se início à nova comunidade em Cuernavaca, pelo que a partir do sábado que me mandava mensagem para coordenar a hora de saída da Cidade do México para chegar à celebração no vizinho estado de Morelos. Ainda que madrugasse um pouco, alegrava-se na partilha com a comunidade daquela cidade. Assim é que às 8 da manhã já estava em minha casa para irmos para Cuernavaca, claro que passávamos em Tres Marías para tomar o pequeno almoço e chegávamos pontualmente para partilhar.

 

Pandemia, Reconciliação e Partida

As experiências em Magdala-Cuernavaca foram muito gratificantes uma vez que vários dos seus membros tiveram grandes vivências. Eles davam-nos ânimo e Charlie alegrava-os com o seu sarcasmo. Conseguiu que gostassem dele em muito pouco tempo. Contudo, devido à pandemia, em fevereiro de 2020 foi a última celebração a que assistimos. As reuniões continuaram, mas de maneira virtual. Ainda que em março nos tenhamos visto para irmos à Ermita Ajusco, de Albergues de México, para reservar o espaço para o nosso retiro da Semana Santa, pois mensalmente se realiza um encontro de oração na Ermida - e nesta ocasião seria especial, uma vez que um casal iria realizar um ritual para que o seu bebé nascesse sem problemas - pelo que partilhámos muito bem com os assistentes que se encontravam lá nesse momento. Nessa ocasião, o Charlie esteve muito alegre pois dizia que cada ser é uma bênção. Podemos recordar os muitos momentos que passámos naquele lugar, como a maioria dos retiros da Vinho Novo.

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Essa foi a última vez que vi o Charlie fisicamente já que a pandemia da COVID-19 nos obrigou a resguardar-nos. Quando nos víamos era através do nosso espaço de oração virtual. Em maio, devido à Marcha do orgulho na Cidade do México, pediram-nos para organizar uma celebração para a REDCAM. Isso emocionou-o muito e esteve muito entusiasmado por esse evento e outros que avizinhavam: o segundo encontro da REDCAM e a reunião que a rede teria com o Arcebispo de Monterrey. Dizia que lhe davam "muita esperança e luz".

O Charlie manteve sempre a sua fé e esperança perante qualquer adversidade e estava pronto para reconciliar-se. Comentou comigo que no ano passado tinha tido um encontro com a pessoa que o tinha afastado do seminário e que tinha havido reconciliação. Estava sempre disposto a ajudar a quem lho pedisse. Nestes últimos dias, várias pessoas partilharam comigo experiências nas quais as apoiou.

No dia 10 de agosto de 2020, Charlie partiu para a casa de Deus Pai-Mãe. Doeu muito a partida física do meu grande irmão. Recordo-o com essa alegria que mostrou durante a sua intervenção na reunião online de representantes da REDCAM, apenas uns dias antes, a 2 de agosto. Simplesmente agradeço pela sua vida e pelo tempo que partilhou comigo no compromisso de continuar na senda de Jesus, nosso irmão. Sei que agora contamos com um intercessor.

Artigo original: RED CATÓLICA ARCOÍRIS MÉXICO