Homossexualidade: Perspectiva Bíblica
A Bíblia condenou em geral a homossexualidade (no Antigo Testamento a masculina) por considerar que ela vai contra uma ordem querida por Deus e expressa na união do homem e da mulher, tal como aparece no Génesis 2, 3. Essa condenação expressa-se em três contextos principais e deve ser interpretada a partir do conjunto da revelação bíblica.
- Grandes relatos simbólicos. Dois relatos básicos refletem esta condenação, situando-a num contexto de polémica, num caso contra os cananeus das margens do Mar Morto (Gen 19, 1-19), noutro caso contra uma cidade perversa da tribo de Benjamim (Jz 19). No primeiro caso trata-se do «crime» dos sodomitas, que querem deitar-se com os «homens» (=anjos) que vieram visitar Lot (Gen 19, 5), suscitando a ira de Deus que destrói a cidade, daqui apareceu o nome «sodomia, sodomitas», que identifica um tipo de violência sexual com pecado por parte dos habitantes de Sodoma. No outro caso, trata-se do «crime» dos habitantes de Guibeá de Benjamim, que querem deitar-se à força com o levita que passa, deste modo, o humilharem. Contudo, o levita defende-se e entrega-lhes a sua concubina, dando assim origem a uma série de vinganças e violência que preenchem a parte final do livro dos Juízes (Jz 19-21). Em ambos os relatos supõe-se que a homossexualidade vai contra a ordem de Deus. Porém, aquilo que o texto condena diretamente não é a homossexualidade em si, mas sim a violência homossexual, dirigida num caso contra os homens-anjos e no outro contra o levita.
- As leis contra a homossexualidade estão contidas no Código da Santidade, do livro do Levítico: Lev 18, 22 condena de forma taxativa a ação homossexual masculina: Não coabitarás sexualmente com um varão; é uma abominação; O Lev 20, 13 impõe a pena de morte para os homossexuais: «Se um homem coabitar sexualmente com um varão, cometeram ambos um ato abominável; serão os dois punidos com a morte; o seu sangue cairá sobre eles». Trata-se de leis sociais que têm de ser entendidas a partir da visão especial da pureza-santidade desenvolvida pelo Levítico, num contexto sacerdotal, marcado pelos tabus da distinção e do sexo. Quem quiser traduzir e aplicar diretamente essas leis no nosso contexto, sem ter em conta o seu fundo antropológico, terá de assumir e cumprir o resto das leis do Levítico, tanto no que diz respeito aos sacrifícios como aos tabus de sangue, à distinção de animais puros e impuros e às diversas doenças e manchas, que aparecem em geral, como a lepra. Ninguém, que eu saiba, advoga essa interpretação literal do Levítico, a não ser nalguns círculos «religiosos» do judaísmo. É evidente que este tema pode e deve colocar-se hoje a partir das perspetivas antropológicas e teológicas, diversas, de modo que não faz qualquer sentido manter à letra os antigos costumes israelitas. Somente dessa forma fazemos justiça às normas e leis, por outro lado exemplares, do Levítico.
- A interpretação de Paulo. Mais próximo de nós, mas igualmente estranho e necessitando de explicação, é o texto de Paulo quando fala do pecado dos «gentios» que, ao adorarem os ídolos, caíram nas mãos das suas próprias perversões (Rom 1, 18-31). Não estamos perante um texto normativo nem legal, do tipo evangelho, mas sim uma apresentação retórica e apocalíptica da situação do mundo pagão (da humanidade) que se eleva como sinal de pecado perante o Deus da fé e da graça de Cristo. A condenação de Paulo pode dividir-se em três partes, uma do tipo mais pessoal-individual (Rom 1, 21-23), outra do tipo mais pessoal-sexual (Rom 1, 24-27) e outra do tipo mais social (Rom 1, 28-31). Seguindo algumas tábuas sociais do seu tempo, Paulo quis apresentar um quadro dos grandes males da sociedade à sua volta, que têm a sua origem, a sua opinião, no abandono de Deus, entendido sob a forma de «retaliação teológica»: ali onde os homens abandonaram Deus, Deus abandona-os nas mãos da sua própria perversão, como mostra o caso da condenação da homossexualidade: «Afirmando-se como sábios, tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus incorruptível por figuras representativas do homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de répteis… Foram esses que trocaram a verdade de Deus pela mentira, e que veneraram as criaturas e lhes prestaram culto, em vez de o fazerem ao Criador, que é bendito pelos séculos! Ámen. Foi por isso que Deus os entregou a paixões degradantes. Assim, as suas mulheres trocaram as relações naturais por outras que são contra a natureza. E o mesmo acontece com os homens: deixando as relações naturais com a mulher, inflamaram-se em desejos de uns pelos outros, praticando, homens com homens, o que é vergonhoso, e recebendo em si mesmos a paga devida ao seu desregramento. E como não julgaram por bem manter o conhecimento de Deus, entregou-os Deus a uma inteligência sem discernimento. E é assim que fazem o que não devem.» (Rom 1, 22-23.25-28; na mesma linha cf. 1 Tim 1, 10). Este não é um texto da lei moral, mas de constatação apocalíptica. Paulo não diz o que as coisas devem ser, mas sim o que são. Paulo, um judeu zeloso, sente-se horrorizado perante aquilo que na sua maneira de ver constituí a perversão sexual greco-romana, expressa em formas de homossexualidade não somente masculina (como a que condena o Antigo Testamento), mas também feminina, colocando deste modo em paralelo as afirmações sobre os dois sexos. As afirmações concretas de Paulo são retóricas e exageradas, pois o mundo greco-romano não era somente como ele o apresenta. Por outro lado é um texto difícil de aceitar de forma literal, pois é originado num ambiente cultural muito diferente do nosso. Apesar disto, o princípio e sentido básico da argumentação paulina continua a ser valioso, desde que tenhamos em conta algumas observações:
- Paulo vincula a sexualidade com a «transcendência» de Deus, que sustem, a seu ver, toda a ordem humana. Ali onde o homem nega a «diferença» de Deus, o homem fecha-se em si mesmo e corre o risco de tornar-se incapaz de aceitar as diferenças, a complementaridade das pessoas. O Deus de Paulo marca a alteridade, mantem a distância. Por isso, ali onde homens e mulheres se fecham num mundo divinizado (idolatria) tornam-se incapazes de amar-se como distintos. Nessa linha, Paulo pode condenar um tipo de homossexualidade porque pensa que ela é a expressão de um amor-de-lei, que não tira o Homem (varão ou mulher) de si mesmo, mas que o fecha num plano de egoísmo, de modo que cada um somente se quer a si mesmo, busca somente o seu desejo, negando o desejo e a vida do outro. Aquilo que Paulo condena é o autoerotismo, a união sem complementaridade pessoal, sem aceitação da alteridade que, a seu ver, está marcada pela diferença sexual (pessoal) de varão e mulher.
- Paulo não condena a homossexualidade enquanto tal, mas sim o egoísmo no amor. Certamente, o tema resulta complexo no plano psicológico e social, de modo que é difícil oferecer, neste plano, respostas que agradem a todos. Porém, a intenção de condenar a homossexualidade física (legal) a partir da antropologia bíblica e em especial a partir de Rom 1, 24-27 (onde se assume e culmina para os cristãos o que o Antigo Testamento disse sobre o tema) carece de sentido e acaba sendo contrário ao argumento de Paulo. Condenar a homossexualidade através da lei implica cair na pior das leis. Aquilo que Paulo quer destacar é o amor em liberdade e gratuidade. Por isso há «amor homossexual» (quando há alteridade e gratuidade) já não se pode falar, de modo algum, de pecado.
A chave do desapego e triunfo do amor não está, portanto, na forma de relação exterior (entre pessoas de sexo diferente ou do mesmo), mas sim no facto que se trata de uma relação de pessoas, em linha de alteridade, de modo que cada um procure e encontre o outro como diferente, para o amar e não se procure e ame somente a si próprio no outro. Deste modo não se resolvem todos os problemas, mas podem equacionar-se melhor, a partir da experiência da graça. Por isso, tudo aquilo que Paulo disse sobre a condenação de um tipo de homossexualidade terá de reinterpretar-se a partir daquilo que disse sobre a graça de Deus ao longo da carta aos Romanos. Por isso, entender essa condenação da homossexualidade de uma maneira objetivista, como algo já resolvido no início da carta, sem chegar ao final do esplendido desapego de graça e amor que nos dá Romanos (tal como culmina em Rom 12-13), significa marginalizar Paulo. Dando mais um passo, há que dizer que o tema deve ser entendido a partir do Sermão da Montanha, onde Jesus não condena a homossexualidade, mas sim que abre caminhos de amor em gratuidade, que tanto valem para homens como para mulheres, para homossexuais e para heterossexuais.
O tema, portanto, continua aberto sobretudo no plano psicológico e sociológico, sem que os cristãos queiram ou possam impor à sociedade formas objetivas de conduta sexual que, por outro lado, não derivam do conjunto da Bíblia, corretamente entendida, nem da vida e mensagem de Jesus. O tema é difícil de resolver de forma objetiva (para quê resolve-lo nesse plano?) e é possível que as uniões homossexuais resultem mais complexas e «difíceis» do que as heterossexuais, porque nelas pode custar mais a descoberta e o desapego da alteridade, sobretudo em relação ao nascimento e educação dos filhos (onde a alteridade de figuras paterno-maternas parece necessária). Contudo, em muitos casos, precisamente essa mesma dificuldade, com a problemática social de fundo, pode fazer com que as uniões (casamentos) homossexuais realcem melhor alguns rasgos de gratuidade e alteridade pessoal que Paulo destacou em Rom 1, 18-31 e no conjunto da sua carta aos Romanos.
Autoria: Xabier Pikaza
Tradução: José Leote (Rumos Novos)
Artigo original aqui.