A Bala
A homossexualidade é um franco-atirador silencioso que coloca uma bala no coração das crianças que brincam nos pátios, sem se importar que estas sejam filhas de conservadores ou de progressistas, de agnósticos ou de católicos integristas, não lhe falta a pontaria nem nos colégios privados nem nos públicos. Atira com idêntica perícia nas ruas de Chicago, nas aldeias italianas ou nos bairros de Joanesburgo. A homossexualidade é um franco-atirador cego como o amor, generoso como o riso, tolerante e carinhoso como um cão. Quando se cansa de disparar contra as crianças, atira uma rajada de balas perdidas que vão alojar-se nos corações de uma camponesa, de um taxista, de um transeunte num parque... A última bala atingiu uma mulher de oitenta anos, enquanto esta dormia.
A transexualidade é um franco-atirador silencioso que dispara contra o coração das crianças que se veem ao espelho, ou daqueles que contam os passos enquanto caminham. Não sabe se nasceram de PMA (Procriação Medicamente Assistida) ou de um casamento católico. Não lhe importa se vêm de famílias monoparentais, ou se o papá vestia de azul e a mamã de rosa; nem o calor de Sochi nem o calor de Cartagena das Índias o fazem tremer. Abre fogo do mesmo modo em Israel e na Palestina. A transexualidade é um franco-atirador cego como o riso, generoso como o amor, carinhoso e tolerante como uma cadela. De quando em vez dispara sobre um professor de província ou sobre uma mãe de família.
Para @s que têm a valentia de olhar a ferida de frente, a bala converte-se numa chave mestra que abre uma porta em direção a um mundo nunca visto. Caem todos os véus, a matriz desconstrói-se. Contudo, algumas e alguns d@s que levam com uma bala no peito decidem viver como se não a tivessem dentro de si. Há quem tenha sido mort@ por levar com a bala.
Outr@s compensam o peso da bala com grandes gestos de dom joões ou de princesas. Há médicos e igrejas que prometem tirar a bala. Os raios da fé confundem-se com descargas de eletricidade. Porém, ninguém ainda conseguiu tirar a bala. Podem enterrá-la mais fundo no peito, mas não a tirar. A tua bala é como o teu anjo da guarda: estará sempre contigo!
Eu tinha três anos quando, pela primeira vez, senti o peso da bala. Senti que a carregava quando ouvi o meu pai tratar por vacas desavergonhadas duas raparigas estrangeiras que caminhavam de mão dada pela aldeia. Nesse momento, senti que o peito me ardia. Nessa noite, sem saber porquê, imaginei, pela primeira vez, que fugia da aldeia para ir para o estrangeiro. Os dias que se seguiram foram os dias do medo, da vergonha.
Não é difícil imaginar que entre os adultos que participam na manifestação do Hazte Oír (Faz-te ouvir) há algumas e alguns que carregam, enquistada no peito, uma bala ardendo. Também não é difícil saber, por dedução estatística, conhecendo a boa pontaria dos nossos francoatiradores, que haverá entre os seus filh@s algumas crianças que cresceram com a bala no coração.
Quando vejo avançar as famílias nas manifestações neoconservadoras com seus filhos e filhas, não posso deixar de pensar que entre essas crianças há algumas de três, cinco, quem sabe, de apenas oito anos, que já transportam uma bala ardendo no peito.
Ostentam cartazes que dizem «não tocar nos nossos estereótipos de género», «os meninos têm pénis, as meninas têm vaginas. Não te deixes enganar!» e que alguém lhes colocou nas mãos. Porém, eles sabem que não poderão estar à altura do estereotipo.
Os seus pais gritam que meninas lésbicas, os meninos maricas e as crianças trans não frequentam o colégio, mas essas crianças sabem que transportam a bala consigo. Durante a noite, como acontecia quando eu era um menino, vão para a cama com a vergonha de dececionar os progenitores, quem sabe se com medo que os seus progenitores as abandonem ou que desejem a sua morte. E sonham, como acontecia comigo quando era menino, que possam fugir para um lugar no estrangeiro ou para um planeta distante, onde as crianças da bala possam viver. E agora falo-vos a vocês, as crianças da bala, e digo-vos: a vida é maravilhosa, esperamos-vos aqui, tod@s @s caíd@s, @s amantes do peito perfurado. Não estais sós!