Efeminados e Sodomitas: Quem são eles?
Será que a Bíblia reprova a homoafetividade, como a conhecemos no nosso tempo e cultura?
O apóstolo Paulo foi o único escritor do Novo Testamento a fazer menção a atos homossexuais – entre homens, apenas. O silêncio dos Evangelhos, dos Atos dos Apóstolos, das Epístolas Gerais e do Apocalipse comprova que os seus escritores estavam preocupados com outras questões e o facto de apenas Paulo mencionar atos homossexuais – por três vezes, apenas – é indício de que os atos homogenitais não constituíam um tema central da abordagem e do conceito de pecados sexuais.
Na verdade, duas palavras utilizadas nessas ocasiões por Paulo são razão de grande controvérsia entre os eruditos. A maioria das traduções protestantes em língua portuguesa está baseada no trabalho de João Ferreira de Almeida1. Porém, nos últimos anos outras traduções vêm merecendo algum destaque, o que representa uma mudança significativa, também, no sentido de alguns textos2. Há avanços e retrocessos em tais traduções, das quais se destacam a Bíblia Judaica e a Bíblia "A Mensagem" (baseada na versão de João Ferreira de Almeida).
A grande chave para se rejeitar tais textos como referência à homossexualidade é a dificuldade em saber com certeza o significado das palavras cujas traduções mais consagradas são “efeminados” e “sodomitas”. Tais palavras no original grego são, respectivamente: malakoi e arsenokoitai. Há dezenas de traduções para ambas as palavras, o que prova a incerteza dos eruditos sobre o que elas realmente significam no texto original. Palavras e termos como “devassos”, “travestis”, “catamitos”, “prostitutos masculinos”, “sodomitas”, “efeminados”, “pederastas” e “pedófilos”, entre várias outras, já foram utilizados para traduzir malakoi e arsenokoitai.
Malakos (plural malakoi) aparece noutros textos bíblicos e significa, literalmente, macio, suave ao toque, mole. No texto de Paulo adquiriu um significado metafórico, figurado. Os dicionários teológicos associam malakos a um homem efeminado, mas também reconhecem que o termo pode significar pessoas em geral dadas aos prazeres da carne (Dicionário VINE, CPAD). Tal tradução é bem mais coerente, pois todos os outros pecados ali citados se referem a pessoas de ambos os géneros. Algumas traduções como A Bíblia de Jerusalém (em português), La Bible du Semeur (em francês) e a Contemporary English Version (em inglês) já apresentam esta ideia. Há estudos que relacionam malakoi com a prostituição masculina praticada na época de Paulo, principalmente em Corinto, cidade famosa pela sua depravação sexual. Algumas traduções como a “Today’s New International Version” (2001), a “New International Reader’s Version” (1996) e a “New Century Version” (1984) apresentam essa ideia. Embora não completamente precisas, essas traduções já representam um avanço ao disassociar os pecados dos malakos da homossexualidade moderna. A palavra sodomita também aparece na Bíblia como referência aos prostitutos do templo. Conferir com Deuteronómio 23,17.18, de preferência em traduções diferentes.
O contexto cultural e religioso de Corinto justifica perfeitamente a teoria de que Paulo se referia à depravação ritualística tão comum naquela cidade: Leiamos o que diz Lindolfo WEINGÄERTNER, na obra O contexto histórico das recomendações bíblicas quanto à sexualidade, Encontro Publicações, 2000. Paraná (Brasil):
Nos tempos apostólicos, as influências das religiões oriundas da Babilónia, Pérsia, Egito e outras tinham invadido em larga escala a antiga religião dos gregos e romanos. Assim, no tempo do apóstolo Paulo, na cidade de Corinto, longe do lugar de origem dos cultos de fertilidade, existia um templo de Diana (chamada também de Ártemis) no qual atuavam centenas de prostitutas e prostitutos cultuais, que se entregavam sexualmente aos que frequentavam o lugar de adoração. O verbo ‘corintiar’ (korintiázein) era sinónimo de ‘viver em promiscuidade’. Nas cartas de Paulo aos coríntios ainda podemos sentir as dimensões da luta do evangelho de Cristo com a libertinagem e a promiscuidade sexual prevalecentes na cidade.
Apenas o vocábulo “arsenokoitai” se refere exclusivamente a homens, pois etimologicamente temos “arseno” que significa literalmente homem. Koitai significa “leito”, “cama”, numa conotação sexual. Portanto, arsenokoitai, significa o homem que mantém relações com outro homem ou, mais precisamente, o homem que penetra outro homem. Na época de Paulo, era comum a prática da exploração sexual, principalmente na relação senhor/escravo. Em Timóteo, Paulo menciona, juntamente com arsenokoitai, os traficantes de jovens escravos, o que reforça tal interpretação. Algumas traduções, valendo-se desse facto sócio-histórico, traduziram arsenokoitai como “pederastas” (Bíblia Vozes – 1995) e “pedófilos” (Bíblia dos Capuchinhos – 2002). Tais traduções, ainda que não completamente exatas, são coerentes com o contexto social do século I, pois revelam um caráter abusivo em tais relações. Essa era a visão judaica do comportamento sexual romano: a violência, o abuso e a prostituição. Paulo, por ser judeu, cultivava tais conceitos. O mais importante é compreender que o apóstolo desconhecia o sentido moderno da homoafetividade. O que ele presenciava estava muito longe de representar o amor entre pessoas do mesmo sexo e os seus relacionamentos estáveis. Alguns tradutores já perceberam que Paulo condena qualquer tipo de ato sexual não restrito às relações heterossexuais legais para a cultura judaica. Vamos ler novamente esses textos nas traduções já mencionadas no início deste artigo:
Quem usa e abusa das pessoas, do sexo, da terra e de tudo que nela existe não se qualifica como cidadão do Reino de Deus. Estou falando de libertinagem heterossexual, devassidão homossexual, idolatria, ganância e vícios destruidores.
(1 Coríntios 6,9 - Bíblia “A Mensagem”, 2011, Editora Vida, Brasil)
Temos consciência de que a Torah não tem por objetivo a pessoa justa, mas quem negligencia a Torah: descrentes, ímpios e pecadores, quem mata pai e mãe, assassinos, pessoas sexualmente imorais – quer heterossexuais quer homossexuais– vendedores de escravos, mentirosos e perjuros, e quem age de forma contrária à sã doutrina.
(1 Timóteo 1,9 e 10 – Bíblia Judaica, 2011, Editora Vida, Brasil)
Talvez nunca saibamos o que tais palavras significam, porém, é evidente que não se referem às relações homoafetivas e monogâmicas da atualidade. O que Paulo condena em tais textos é a prostituição, o sexo abusivo, cometido por solteiros (fornicação) fora do casamento (adultério) e o abuso entre homens. Outro ponto a ser considerado é o seguinte: se tal texto condena a homoafetividade, por que não menciona as mulheres?
Artigo original: Alexandre Feitosa
Adaptação: José Leote
1 João Ferreira de Almeida (Torre de Tavares, Várzea de Tavares, Portugal, 1628 - Batávia, Indonésia, 1691), foi um ministro pregador da Igreja Reformada nas Índias Orientais Holandesas, reconhecido especialmente por ter sido o primeiro a traduzir a Bíblia Sagrada para a língua portuguesa. A sua tradução do Novo Testamento foi publicada pela primeira vez em 1681, em Amsterdam. Almeida faleceu antes de concluir a tradução dos livros do Antigo Testamento, chegando aos versículos finais do Livro de Ezequiel.
2 A este propósito podemos mencionar a recente tradução da Bíblia Grega para português, feita por Frederico Lourenço