Há cem anos a Igreja Católica prestava pouca atenção à homossexualidade
Ativistas realizam uma manifestação contra o afastamento de padres por parte da igreja devido à sua alegada homossexualidade. Foto Kevin Lamarque/Reuters
O Papa Francisco falou abertamente acerca da homossexualidade. Numa entrevista recente, o Papa afirmou que as tendências homossexuais «não são pecado». E há alguns anos, num comentário feito durante uma entrevista num voo, afirmou:
«Se uma pessoa é gay e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?»
Contudo, o Papa desencorajou igualmente os homens homossexuais de entrarem no sacerdócio. Afirmou categoricamente numa outra entrevista que para uma pessoa com tendências homossexuais, o «ministério ou a vida consagrada não são o seu lugar.»
Muitos padres gays, quando entrevistados pelo The New York Times, caracterizaram-se como estando numa «jaula» em resultado das políticas da igreja referentes à homossexualidade.
Como estudioso especializado na história da Igreja Católica e estudos de género, posso atestar que há 1000 anos, os padres gays não eram tão restringidos. Nos primeiros séculos, a Igreja Católica prestava pouca atenção à atividade homossexual entre padres ou entre leigos
Aceitação aberta dos desejos do mesmo sexo
Embora a posição oficial da igreja de proibir as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo tenha permanecido constante, a importância que a igreja atribui ao «pecado» tem variado. Além disso, ao longo dos séculos, a igreja só esporadicamente decidiu investigar ou impor as suas proibições.
Antes do séc. XII, era impossível aos padres - mesmo os mais célebres como o abade do século XII e escritor espiritual São Elredo de Riveaulx - escrever abertamente sobre o desejo entre pessoas do mesmo sexo e relacionamentos emocionais e físicos existentes com outros homens.
Equívocos bíblicos
A Bíblia dá tanto destaque aos atos entre pessoas do mesmo sexo como o deu a igreja primitiva, ainda que a muitos cristãos tenha sido ensinado que a Bíblia proíbe, de forma clara, a homossexualidade.
As escrituras judaico-cristãs raramente mencionam a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo. Dos 35527 versículos da Bíblia católica, somente sete - 0,02% - são, algumas vezes, interpretados como proibindo os atos homossexuais.
Mesmo nesses, as referências aparentes às relações entre pessoas do mesmo sexo não eram originalmente escritas ou compreendidas como indicando categoricamente atos homossexuais, tal como acontece nos nossos dias. Os cristãos antes do século XIX não tinham qualquer conceito de identidade gay ou hétero.
Por exemplo, o Génesis 19 regista a destruição por parte de Deus de duas cidades, Sodoma e Gomorra, por «enxofre e fogo» devido à sua fraqueza. Durante os 1500 anos após a escrita do Génesis, nenhum escritor bíblico fez equivaler esta fraqueza aos atos homossexuais. somente no século I d. C. um filósofo judeu, Fílon de Alexandria, igualou pela primeira vez erradamente o pecado de Sodoma com a sexualidade homossexual.
Representação da destruição de Sodoma e Gomorra. John Martin
Foram precisos vários séculos para que um consenso cristão concordasse com a interpretação errada de Fílon e esta tornou-se a explicação aceite deste texto bíblico, do qual deriva o termo depreciativo «sodomita».
Contudo, hoje, os teólogos afirmam geralmente que a fraqueza que Deus puniu foi a arrogância dos habitantes e a sua falta de caridade e hospitalidade, não qualquer ato sexual.
Os estudiosos religiosos procuraram igualmente nos outros seis escritos onde os cristãos da atualidade defendem justificar a condenação categórica por parte de Deus dos atos homossexuais. Descobriram como traduções incorretas, contextualizações mal feitas e interpretações erradas alteraram o sentido destes textos antigos de forma a legitimarem os preconceitos atuais contra a homossexualidade.
Por exemplo, em vez de rotularem todos os atos homossexuais como pecaminosos aos olhos de Deus, os cristãos primitivos estavam preocupados com os excessos de comportamento que podiam afastar os crentes de Deus. O apóstolo Paulo criticou os atos homossexuais em simultâneo com uma lista de comportamentos desregrados, tais como o maldizer e a soberba, nas quais qualquer crente se podia envolver.
Ele não podia estar a deixar-nos uma condenação em branco da homossexualidade ou dos homossexuais, porque estes conceitos não existiram durante mais de 1800 anos.
O sexo gay, enquanto tal, normalmente não era punido
Os primeiros responsáveis pela igreja não pareceram excessivamente preocupados em punir quem se envolvia em práticas homossexuais. Descobri que existe um silêncio notável em relação aos atos homossexuais, quer em teólogos quer nas leis da igreja, durante mais de 1000 anos, antes dos finais do séc. XII.
Quando os primeiros comentadores cristãos, como John Chrysostom, um dos escritores bíblicos mais profícuos do século IV, criticou os atos homossexuais, fê-lo como parte de uma condenação ascética de todas as práticas sexuais.
Para além disso, não era geralmente o ato sexual em si que era pecaminoso, mas alguma consequência daquele, como por exemplo o modo como participar num ato poderia violar as normas sociais, como as hierarquias de género. As normas sociais ditavam que os homens fossem dominantes e as mulheres passivas, na maior parte das vezes.
Se um homem, durante o ato sexual, assumia um papel passivo, ele assumia o papel da mulher. Ele era «não masculino e efeminado», uma transgressão da hierarquia de género que Fílon de Alexandria chamou o «maior de todos os males». A preocupação era vigiar os papéis de género e não os atos sexuais.
Antes de meados do séc. XII, a igreja agrupou a sodomia conjuntamente com muitos outros pecados envolvendo a luxúria, mas a penalização por relações homossexuais era muito branda, se existiu, ou nem sequer era levada a cabo.
Os concílios da igreja e os manuais de penitência mostram pouca preocupação acerca do assunto. No início do séc. XII, uma época de ressurgimento da igreja, reforma e expansão, padres e monges proeminentes podiam escrever poesia e cartas glorificando amor e paixão - mesmo paixão física - em relação a pessoas do mesmo sexo e não eram censurados por isso.
Em vez disso, eram as autoridades civis que eventualmente assumiam o papel de perseguir os perpetradores.
Os anos de hostilidade
Em finais do séc. XII, a atmosfera primitiva de tolerância relativa começou a mudar. Os governos e a igreja católica estavam a crescer e a consolidar uma maior autoridade. Começaram a progressivamente procurar regular as vidas - mesmo as vidas privadas - dos seus súbditos.
O Terceiro Concílio de Latrão em 1179, um concílio da igreja realizado do palácio de Latrão, em Roma, por exemplo, baniu a sodomia. Os clérigos que a praticassem seriam proscritos do rebanho ou entrariam num mosteiro para aí realizarem penitência. Os leigos eram mais asperamente punidos com a excomunhão.
Deve referir-se que essa hostilidade cresceu, não somente em relação às pessoas envolvidas em relações homossexuais, mas igualmente em relação a outros grupos minoritários. Judeus, muçulmanos e leprosos enfrentaram igualmente níveis crescentes de perseguição.
À medida que as leis da igreja e as punições em relação aos atos homossexuais se tornaram cada vez mais duros, no início somente eram esporadicamente cumpridos. Clérigos influentes, como o teólogo e filósofo do séc. XIII Tomás de Aquino e o pregador popular Bernardino de Siena, conhecido como o «Apóstolo da Itália», não estavam de acordo quanto à severidade do pecado envolvido.
Contudo, à volta do séc. XV a igreja moldou-se às opiniões sociais e tornou-se mais vocal na condenação e perseguição dos atos homossexuais, uma prática que continua até hoje.
Hoje, os padres temem a retaliação
Atualmente, o Catecismo da Igreja Católica (CIC) ensina que desejar outras pessoas do mesmo sexo não é pecaminoso, mas agir de acordo com esse desejo já o é.
Conforme o CIC afirma, as pessoas com tais desejos devem permanecer castas e «devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de discriminação injusta.» De facto, ministérios católicos como a Rumos Novos - Católicas e Católicos LGBT (Portugal) procuram servir e defender estas pessoas.
Contudo, os padres gays pertencem a uma categoria diferente. Vivem e trabalham sob um celibato obrigatório, frequentemente em ordens de pessoas do mesmo sexo. O Papa Francisco encorajou-os a serem «perfeitamente responsáveis» para evitar o escândalo, ao mesmo tempo em que desencorajava outros gays a entrarem no sacerdócio.
Muitos temem as represálias se não conseguirem viver de acordo com este ideal. Para os cerca de 30 a 40% dos sacerdotes americanos que são gays, a abertura em relação ao desejo homossexual do passado mais não é do que uma recordação.
Fonte: The Conversation