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Associação RUMOS NOVOS - Católicas e Católicos LGBTQ (Portugal)

Somos católic@s LGBTQ que sentiram a necessidade de juntos fazerem comunhão, partilhando o trabalho e as reflexões das Sagradas Escrituras, caminhando em comunidade à descoberta de Deus revelado a tod@s por Jesus Cristo.

14 de Março, 2022

Podemos verdadeiramente odiar o pecado e amar o pecador?

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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Não tenho a certeza absoluta de onde vem a expressão popular "Odeia o pecado, ama o pecador". Pode derivar da Carta 211 de Sto. Agostinho, escrita em 424 d. C., na qual ele afirma: Cum dilectione hominum et odio vitiorum, ou "Com amor pela humanidade e ódio aos pecados." Uma referência contemporânea é Mahatma Gandhi que escreveu na sua autobiografia "Odiar o pecado e não o pecador é um preceito que, embora suficiente fácil de compreender, é raramente posto em prática e é por isso que o veneno do ódio alastra pelo mundo."

A frase não está na Bíblia, ainda que Jesus nos peça nos Evangelhos, sob diversas formas, para nos amarmos uns aos outros e nos admoestar frequentemente contra o pecado. Talvez a analogia mais próxima do ditado contemporâneo seja encontrada na Carta de Judas, que diz "Tratai com misericórdia aqueles que vacilam; a uns, procurai salvá-los, arrancando-os do fogo" (1, 22-23).

Mas mais valia estar na Bíblia, tal é a frequência com que é utilizado. É um ditado quase canónico, conjuntamente com "Deus ajuda quem se ajuda a si próprio" como um versículo que as pessoas pensam que está - ou deveria estar - na Bíblia.

"Odiar o pecado, amar o pecador" faz muito sentido. Enquanto cristãos somos chamados a amar todas as pessoas, mesmo os nossos inimigos, disse Jesus, que, a partir da cruz, perdoou aos seus algozes. Desta forma, devemos amar todas as pessoas, e isso inclui os pecadores. Jesus demonstrou repetidamente esse amor: Foi frequentemente criticado por comer com "pecadores e cobradores de impostos", quando a "comunhão de mesa" era um sinal de aceitação. Ao mesmo tempo, evitar o pecado estava no cerne do ministério de Jesus. "Vai e não tornes a pecar," diz ele à mulher apanhada em adultério (Jo 8, 1-11).

O ditado promove igualmente uma demarcação saudável entre a pessoa e o ato. Podemos amar e reverenciar uma pessoa que pode ter cometido pecados hediondos. Helen Prejean, C.S.J., que ministra em condenados no corredor da morte, diz frequentemente "Uma pessoa é mais do que a pior coisa que alguma vez tenha feito." Um elemento de "odeia o pecado, ama o pecador" está operacionalizado aqui.

O problema com este ditado aparentemente compassivo é que ele é hoje aplicado quase exclusivamente a um grupo: as pessoas LGBTQ. O pensamento é que podemos amar as pessoas LGBTQ, desde que condenemos os seus atos - incluindo os relacionamentos e o casamento entre pessoas do mesmo sexo - rotulando-os de "pecados."

Através desta aplicação seletiva, o ditado é usado como arma contra as pessoas LGBTQ, porque efetivamente reduz, primeiro e acima de tudo, as pessoas LGBTQ a "pecadores". É claro que somos todos, de uma maneira ou de outra, pecadores. Porém, o uso do termo em referência às pessoas LGBTQ pode ser particularmente cruel, pois não há outro grupo em relação ao qual o termo seja aplicado com tanta regularidade, tão reflexivamente, tão implacavelmente.

Deixo aqui um pensamento experimental que utilizo frequentemente para ajudar as pessoas a compreenderem isto. Imagine que lhe dizia que tinha sido convidado para dar uma palestra a estudantes universitários - como muitas vezes sou. Como a maioria das pessoas sabe, a esmagadora maioria dos estudantes universitários são solteiros e sexualmente ativos e, portanto, não estão em conformidade com o ensinamento da igreja, que proíbe qualquer relação sexual fora do casamento. Os números estão a decrescer, mas um estudo recente demonstrou que 66% dos estudantes do secundário teve relações sexuais no último ano. Portanto, a maioria são "pecadores".

Depois de escutar isto eu ia falar num campus universitário, você diria "Bem, odeie o pecado, ame o pecador"? Iria castigar-me por falar para um grupo de "pecadores"? Provavelmente não, uma vez que ninguém alguma vez me disse isso das centenas de vezes que falei em campus universitários. Nunca ninguém alguma vez utilizou remotamente um tipo de linguagem desse tipo para me descrever os estudantes universitários.

Do mesmo modo, a maioria dos católicos casados do nosso tempo (89%) acreditam que a contraceção não é um problema moral. Muitos usam método de controle de natalidade e, portanto, de acordo com o ensinamento da igreja, pecam. Porém, se eu vos dissesse que iria conduzir um retiro para casais casados, dir-me-ia "Odeia o pecado, ama o pecador?" Provavelmente não, porque, mais uma vez, nunca ouvi ninguém dizer isso no contexto de casais casados nos meus 30 anos como Jesuíta ou 20 anos como padre. Nem uma única vez.

Então em relação a quem é que esta afirmação é frequentemente utilizada? Quem é mais frequentemente rotulado "pecador" num mundo de imoralidade de toda a espécie - ganância, crueldade, mentira, egoísmo, racismo, belicismo, insensibilidade para com os pobres e por aí fora? As pessoas LGBTQ.

É difícil não concluir que as pessoas usam "Odeia o pecado, ama o pecador" exclusivamente quando se referem aos católicos LGBTQ, estão a escolhê-los como se eles fossem as únicas pessoas cujas vidas não estão em conformidade com o ensinamento da igreja. Pior ainda, o "pecado" no qual as pessoas se centram é o modo como estas pessoas se amam. William A. Barry, SJ, o escritor espiritual e psicólogo, disse-me uma vez que isto é particularmente danoso, porque o modo como amamos influencia quase todos os aspetos emocionais, mentais e espirituais das nossas vidas. Dizer "O teu amor é um pecado" é um ataque ao mais profundo da pessoa. Nós mesmos somos uma mistura da mente, corpo e coração. Dizer "O teu amor é um pecado" atinge todas as partes da pessoa humana.

Infelizmente, escuto "Odeia o pecada, ama o pecador" provindo de pessoas que não parecem amar, de modo algum, as pessoas LGBTQ.

No ano passado, celebrei uma Missa em memória do meu amigo Carlos, que foi casado com o seu marido Jim durante muitos anos, e que tinha estado com ele por mais de 30 anos. Carlos era um pilar da comunidade na Igreja de Sto. Inácio de Loiola na cidade de Nova Iorque e serviu como ministro da eucaristia, leitor e diretor espiritual, para além do seu trabalho diário como capelão hospitalar no hospital Memorial Sloan-Kettering. Depois de Carlos ter sido diagnosticado com cancro, o seu marido, Jim, tratou-o com amor, acompanhou-o de médico em médico, através de uma grande cirurgia, ao longo de sessões de quimioterapia e radioterapia, até à sua morte. Embora a missa em memória tenha tido lugar muitos meses após a morte de Carlos, a igreja estava apinhada. Era um sinal de amor que a paróquia tinha para com ele e para com Jim - bem como o amor que ambos tinha demonstrado para com a paróquia.

Algumas semanas depois estava a falar sobre assuntos LGBTQ numa videoconferência com outra paróquia. Contei a história de Carlos e de Jim como um exemplo das vidas levadas por muitas pessoas LGBTQ. Uma pessoa disse "Bem, odeia o pecado, ama o pecador, não é verdade, padre?" Essa pessoa parece ter perdido o fulcral da história e que era que necessitamos de escutar as experiências das pessoas LGBTQ. Essa observação ignorou as suas vidas ricas, reduziu 30 anos de companheirismo a um slogan e categorizou os dois como "pecadores", quando, mais uma vez, somos todos pecadores. Pensei na linha de Jesus "Ainda não compreendem?".

Da próxima vez que se sentirem inclinados a dizer "Odeia o pecado, ama o pecador," podem colocar a vós mesmos algumas questões. Primeira, estou a usar este slogan somente para as pessoas LGBTQ? Segunda, onde é que as suas vidas não são expressão de pecado, mas de amor? E finalmente, o que é que posso aprender sobre Deus através das pessoas a quem chamo de pecadores?

 

James Martin, SJ

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