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Associação RUMOS NOVOS - Católicas e Católicos LGBTQ (Portugal)

Somos católic@s LGBTQ que sentiram a necessidade de juntos fazerem comunhão, partilhando o trabalho e as reflexões das Sagradas Escrituras, caminhando em comunidade à descoberta de Deus revelado a tod@s por Jesus Cristo.

30 de Novembro, 2014

Qual o lugar para as pessoas homossexuais nas nossas comunidades cristãs? (1)

Rumos Novos - Católic@s LGBTQIA+ em Ação

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O acolhimento das pessoas homossexuais é hoje realmente uma realidade nas comunidades cristãs? Embora nos últimos anos tenham sido dados passos em frente, a clandestinidade que as pessoas homossexuais se autoimpõem por temor de serem submetidos a juízos negativos é real e dolorosa para eles mesmos e para suas famílias.

A homossexualidade é uma realidade que existe na história de cada sociedade e de cada cultura. É inegável. Este fato, que permaneceu escondido por séculos, tornou-se hoje público na nossa sociedade. Há muitos anos a Igreja católica tomou em consideração esta realidade.

“Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências homossexuais profundamente radicadas. Devem ser acolhidos com respeito, compaixão e delicadeza”.

Todavia, será que é possível viver contemporaneamente a própria homossexualidade e a própria fé cristã sem precisar esconder-se? Recentemente um documento do Conselho Família e Sociedade (francês) exigia este acolhimento incondicional: “Para as comunidades católicas o acolhimento incondicional de cada pessoa está em primeiro plano. Cada pessoa, independentemente de seu percurso de vida, é em primeiro lugar um irmão ou uma irmã em Cristo, um filho de Deus.

Esta descendência divina transcende todos os elos humanos de família. “Toda pessoa tem direito a um acolhimento amável por aquilo que é, sem que deva esconder um ou outro aspeto de sua personalidade”.

Sabemos que cristãos, católicos e homossexuais estão entre nós, nas nossas famílias, entre os nossos amigos, nas nossas comunidades paroquiais. A diversidade das situações é complexa. A indagação de Martine Gross revela que os gays e as lésbicas cristãs, tendo interiorizado as afirmações da Igreja institucional, frequentemente vivem com desonra e sentimento de culpa a descoberta de sua homossexualidade.

 

Frequentes testemunhos de sofrimento

Participando ao longo de mais de dez anos na associação “Réflexion et Partage [Reflexão e Partilha], sou testemunha da dificuldade para um bom número de pessoas homossexuais encontrarem seu devido lugar na Igreja. Revelam-no muitos testemunhos e narrações de vida.

O testemunho de Thérèse é um entre tantos: Precisei de tempo para entender-me verdadeiramente! Aos quase 53 anos, noiva, começo finalmente a reconhecer-me como homossexual. (...) Fiquei aprofundada numa longa, longuíssima fase de indecisão, até que a realidade me recuperou de modo extremamente brusco. E há quatro anos iniciei realmente este caminho para mim mesma, e também para os outros, nas lágrimas e no sofrimento, mas também na paz e na alegria que às vezes nasce de encontros fortes e autênticos, seja com alguns dos meus amigos/que, que com outros/e que chegaram/e bem antes de mim neste difícil e íngreme caminho.

(...) Na pastoral dos divorciados e dos divorciados/recasados tem havido progressos notáveis. Quando poderemos ver estes progressos também na pastoral da homossexualidade? Quando se cessará de acrescentar sofrimento a sofrimento?

(...) Ouso, como Martin Luther King, ter um sonho: que nas nossas Igrejas, finalmente de portas abertas a toda a humanidade dos homens e das mulheres de hoje, cada um/uma seja acolhido/a como Filho e Filha de Deus, com suas riquezas e suas faltas, na Alegria e na Fraternidade... e que ninguém se deva jamais sentir um passageiro clandestino!”

E ainda o testemunho de Aurélia: “Nós somos inexistentes”: expressão de uma responsável pelas manifestações de “La Manif pour tous” [A Manifestação para todos] contra “O Casamento para todos”. Sim, vós sois milhares. Sim, vós não tendes sido entendidos. Perdoai!

Mas nós (pessoas homossexuais) somos milhões, há séculos, a não ser entendidos, a ser insistentes, invisíveis, estigmatizados, psiquiatrizados, exorcizados, torturados, humilhados, escondidos, e em alguns países até sepultados vivos!”.

E da mesma forma, quando um casal de homens (Julien e Bruno) que vivem junto há mais de dez anos, procura inserir-se num grupo de reflexão paroquial para os casais (hétero, certamente) tendo dez anos de vida em comum, por que excluí-los? São constringidos a marginalizar-se e a criar eles mesmos, fora de suas paróquias, o seu próprio grupo de reflexão junto com outros casais homossexuais católicos?

Evidentemente, os testemunhos não pretendem, por certo, dar uma imagem exaustiva do que vivenciam os cristãos homossexuais, mas têm o mérito de rejeitar toda conceção simplista. Se o testemunho não pode substituir-se ao debate e não pertence somente a ele a verdade, não se pode jogá-lo fora com um gesto da mão, como talvez se ouve: “Sim, mas contigo não é a mesma coisa, nós te conhecemos”.

A Igreja não pode hoje deixar de ir ao encontro das pessoas homossexuais e prosseguir o diálogo com eles e com suas famílias: “(...) o testemunho não pode substituir-se ao debate e não compete somente a ele a “verdade”. É evidente. Mas este debate e esta busca da verdade não podem regatear com este tipo de palavra. Sobretudo em nossa sociedade chamada de comunicação, na época do reino da informação, da imagem e da interatividade...

... Aceitando esta nova realidade (social e também política) através de um retorno ao testemunho, a Igreja pode beneficiar-se de uma nova oportunidade para o anúncio do evangelho nesta sociedade moderna ou mesmo pós-moderna. Para ela é a ocasião de demonstrar:

Que considera o homem de hoje como um interlocutor inteligente, de bom senso, capaz de refletir, e que ela respeita sua liberdade...

Que confia neles a priori (existe uma margem de diferença entre a ingenuidade e a paranoia, que condena de modo preconcebido o interlocutor), que confia nele. Em todos os encontros que teve, Jesus não reduz jamais o outro à sua complexidade. Jamais o encerra na sua contingência...

Que aceita que o homem de hoje queira confrontar as ideias com a realidade através do filtro de suas experiências, que necessita entender e ter o seu próprio parecer. (...)

“Para ela (isto é, para a Igreja) seria o modo de atingir o homem de boa vontade lá onde ele se encontra, de dirigir-se a ele e de reconhecê-lo como alguém que faz parte de um mundo a inventar juntos.”

 

Progressos Pastorais Significativos

Também se ainda resta um caminho a percorrer até que as pessoas homossexuais e suas famílias encontrem o seu justo lugar nas nossas comunidades cristãs, em muitas dioceses ocorrem hoje progressos fundamentais.

O objetivo não é tanto o de realizar uma pastoral distinta para favorecer o acolhimento das pessoas homossexuais, que constituiria uma forma de estigmatização positiva, mas antes o de reconhecer e dar consideração ao que é vivenciado por cada um, “afim de que estas pessoas possam viver uma vida cristã normal e empenhada e ter o seu lugar na Igreja como toda pessoa batizada”.

A primeira iniciativa a realizar é a de incentivar os lugares de acolhimento e de escuta, os grupos de palavra, tornando-os visíveis através de um desdobrável que registe o telefone, o email, o nome da pessoa a contatar.

Há muitíssimos anos algumas associações, como David e Jonathan, Devenir un em Christ [Tornar-se um em Cristo] já fizeram esta experiência. Mas, este tipo de iniciativa deve ter origem da responsabilidade das igrejas diocesanas, evidentemente com a colaboração das associações que as mantêm. Com efeito, muitas pessoas homossexuais e seus pais se sentem privados de recursos.

Sendo católicos, frequentemente se dirigem aos padres de suas paróquias ou à diocese: “Quando tomamos conhecimento da homossexualidade de nossa filha de 18 anos, encontramo-nos desarmados: por que ela era assim? O seu enormíssimo mal-estar e seu não querer viver nos impeliram a procurar entender. Sendo católicos, procuramos um padre para saber se ele conheceria uma associação que pudesse ajudar-nos.

Ele estava despreparado exatamente como nós. Nossa fé nos levou a perguntar-nos como viver esta situação serenamente e no amor atento por nossa filha e nossa família (temos quatro filhos, e esta é a última). Fizemos um percurso numa associação, encontrando outros pais e outros homossexuais.

Encontramos pessoas que escutam sem julgar e que compartilham das nossas dúvidas e das nossas preocupações. Abrimo-nos de um modo que não conhecíamos. Dez anos depois, podemos constatar que enriquecemos o nosso coração e o nosso modo de ver.

Deus é amor. Somente Ele sabe o que é a homossexualidade. Neste caminho que percorremos, confiamo-nos ao Seu Espírito que nos acompanha (...)”.

Muitas dioceses (St. Etienne, Lyon, Grenoble, Angouleme, Aix em Provence...) há um par de anos organizaram grupos de reflexão e/ou grupos de acolhimento, de escuta, de discussão aberta. Assim em Angouleme: “Há dois anos, com o apoio e o encorajamento de Mons. Dagens criamos dois grupos de compartilhamento: um para pessoas homossexuais, e o outro para pais de pessoas homossexuais. Temos dado andamento a estes grupos em colaboração com a associação Devenir Un En Christ. Mas, havia também uma convergente vontade do Padre Dagens e dos dois grupos para uma conexão direta com a diocese, através da pastoral da família. Neste momento estamos começando a difundir um pequeno volante: “Acolhimento e palavra”, para tornar conhecidos os dois grupos nas paróquias e também no site da diocese. De outra parte, queríamos ir mais longe na reflexão sobre o lugar na Igreja e nas nossas comunidades cristãs para as pessoas homossexuais.”

Em muitas dioceses vizinhas está sendo posta em marcha a mesma reflexão. Seria preciso dar evidência também a outros grupos de palavra para progenitores que estão coligados com a associação Réflexion et Partage [Reflexão e Partilha]. Mas, estes grupos ainda não têm verdadeira legitimidade diocesana. Numa diocese da periferia de Paris há cinco anos existe um grupo de discussão formado por pais que têm um filho homossexual.

“Somos cinco famílias. Este pequeno grupo é muito importante para trocar, comunicar e sustentar-nos uns com os outros. Há aproximadamente um mês contatamos com o pároco de St. Germain em Laye. Foi muito acolhedor e conectou um inserto no boletim paroquial. Pessoalmente, sinto-me sempre mais assegurado, e hoje não tenho mais medo de responder a pessoas que têm uma visão negativa. Um fato recente: Uma mãe de família, chegando ao conhecimento que eu tinha um filho homossexual, me disse: “Rezarei por ele”. Eu lhe respondi: “Não, sou-lhe grato, mas antes serei eu a rezar por você, para que seu visual se torne mais aberto”. Não posso mais calar. Creio que os nossos filhos deem um valor adjunto às nossas famílias”. (Marie-Pierre, mãe de família).

Guilherme e Elisabete acrescentam: “É uma fórmula excecional, que responde bem às expectativas dos genitores. Uma fórmula a promover por toda parte possa ser realizada. Tivemos ocasião de falar a respeito com certo número de amigos e muitos deles nos disseram que também eles estavam envolvidos com esta realidade.

O compartilhamento da nossa experiência teve um acolhimento positiva e tem sido iluminadora para outras famílias, mas com frequência essas famílias nos dizem que ninguém sabe (da homossexualidade de um componente) e que não se deve falar disso.”

Assim em Ardèche: “Somos um grupo de pais ativo há nove anos e nos encontramos 2 vezes ao ano com a presença do vigário geral. Atualmente fazem parte 9 casais. Dado que o vigário geral nos acompanha, o bispo tem conhecimento das nossas reuniões”. Os temas enfrentados no ano passado foram o matrimónio e a homogenitorialidade. Escrevemos um artigo em jornais paroquiais, mas obteve eco escasso”.

Em Paris existe um grupo de pessoas homossexuais que vivem como casais e se reúnem regularmente. Julien atesta: “Criamos o nosso grupo de casais católicos (que se encontram também como casais formados por pessoas do mesmo sexo). Este grupo de 6 casais se reúne aproximadamente cada 6 semanas para refletir sobre a questão da fecundidade do casal, em sentido geral.

Existe um aspeto espiritual e ele é compartilhado também por meio de um texto de meditação. De vez em quando convidamos uma pessoa externa ao grupo. Este grupo tem sido para nós e para a nossa fé uma âncora de salvação indispensável durante este último ano, no qual a Igreja da França foi convulsionada pela questão do matrimônio para todos.

Temos compartilhado momentos de rara fraternidade. Mas gostaríamos que tudo isso pudesse ser vivenciado em nível das paróquias. E nos agradaria fazer esta reflexão junto a casais homossexuais, estar dentro da Igreja e não esconder uma parte essencial do nosso ser”.

Devem ser vistos positivamente também os seis seminários tidos junto ao colégio dos Bernardinos em Paris sobre “Fé cristã e homossexualidade”, com a presença de representantes de várias associações (David e Jonathan, Devenir Un En Christ [Tornar-se um em Cristo], Communion Béthanie, Réflexion et Partage [Reflexão e Partilha]).

O último seminário, sobre o tema de “fare coppia” [fazer casal] permitiu cruzar as experiências de casais homossexuais e heterossexuais na escuta, no diálogo, na construção de um viver juntos e de uma fraternidade, destinados a dar os seus frutos.

Outras dioceses assumiram iniciativas para favorecer o diálogo e o encontro, como “O caminho de Emaús” (Nanterre, Orléans), peregrinação de um dia, aberto a todos e em particular às pessoas direta ou indiretamente envoltas com a homossexualidade. Por ter participado, posso assegurar-vos que tudo isso fez caírem muitos preconceitos sobre a homossexualidade.

Muitos dos preconceitos de fato ainda estão ligados a representações mentais, frequentemente por causa da falta de conhecimento e informação sobre a vivência das pessoas, e também por causa da rejeição da diversidade, que provoca perturbação. Creio que esta falta de conhecimento, esta ignorância, traga o medo e o medo gere a exclusão, o desprezo, as confusões, talvez os conflitos, o relegar a gueto e, enfim, o desejo de desembaraçar-se do outro.

 

A Alteridade em Questão

O encontro do outro em sua alteridade é uma questão fundamental. Quantos discursos ouvimos da boca de certos ambientes católicos para estigmatizar as pessoas homossexuais: “Os homossexuais recusam a diversidade”; esta afirmação, nas palavras de certos intelectuais se torna “A homossexualidade é a negação da alteridade”.

Se as diferenças, que sejam sexuais, geracionais ou culturais preexistam sem que nós estejamos em condições de geri-las, elas não garantem que se realize o acolhimento do outro. O saber reconhecer a alteridade nasce de uma aprendizagem que jamais termina, e permite a cada um ser, na relação com o outro, o que é, conduzir a própria vida, jamais sentir-se absorvido pelo outro, quem quer que ele seja (conjugado, amigo, genitor, professor, colega...).

Este trabalho ético é o mesmo para todos: “Cada casal é convidado a perguntar-se em que medida sua relação de amor gera confusão ou cria unidade, seja no interior ou no exterior do casal.

Há casais heterossexuais que de fato não respeitam estas relações da alteridade, como aquelas construídas sobre excessivas semelhanças entre o cônjuge e o pai ou a mãe, ou também aquelas nas quais os genitores consideram os seus filhos como objetos...”

A semelhança genital não tira nada do “ser estranho” do outro. Ou seja, não é possível reduzir o outro ao que conheço de mim mesmo, dos meus desejos, dos meus comportamentos.

As pessoas homossexuais insistem no fato que sua busca sexual não deriva somente, como muitos creem, de uma busca de prazer erótico. Costumeiramente as pessoas esperam encontrar um/uma amigo/amiga com o/a qual possam vivenciar experiências de ternura, fidelidade, ajuda recíproca, compartilhamento de preocupações e interesses diversos... e prazer sexual.

Procuram, deste modo, ter unidos “o desejo e a ternura” fazendo a experiência que amar “não é uma coisa óbvia”.

“Os psicanalistas menos sérios interpretaram erroneamente a conexão amorosa e sexual de um indivíduo com uma pessoa do mesmo sexo como uma conexão narcisista. Como se duas pessoas do mesmo sexo fossem a mesma pessoa! Como se somente a diferença sexual designasse a alteridade entre os seres! Como se, da mesma forma, entre homens e mulheres houvesse mais diferenças do que semelhanças.

A alteridade existe entre dois gêmeos, e com maior razão existe entre dois homens ou duas mulheres saídas de famílias diferentes. A alteridade é um dos determinantes do desejo sexual. Para desejar-nos reciprocamente, temos necessidade de muito de semelhante (o que temos em comum como seres humanos) e de um pouco de não semelhante, como confirma a neurobiologia.

Este “não semelhante” pode ser a diferença dos sexos, mas nem sempre e não somente. Nos humanos a alteridade, fonte de desejo sexual, pode encontrar-se na diferença física, na diferença cultural e social ou na diferença de personalidade.”

Enfim, afirmar que o casal homossexual negue a alteridade significa voltar a reconduzir o conceito de “mesmo” ao aspeto sexual e este último ao sexo. Portanto, não é que, porque dois seres são semelhantes de um ponto de vista biológico que eles são “o mesmo”: dois homens, duas mulheres têm personalidades diversas e únicas que fazem deles seres singulares.

As pesquisas no campo da neurobiologia confirmam que as diferenças entre os indivíduos de um mesmo sexo são tão importantes que superam as diferenças entre os dois sexos. Esta variabilidade se explica com a plasticidade do cérebro. No nascimento, dos nossos 100 bilhões de neurônios, somente 10% são conectados entre si.

90% das restantes conexões se realizarão progressivamente em consequência das influências da família, da educação, da cultura, da sociedade, afirma Catherine Vidal, neurobióloga.

É na capacidade de amar que são postos à prova, para os homossexuais como para os heterossexuais, a aceitação ou a recusa da alteridade, não no valor diferencial e impessoal de um objeto de pulsão.

A relação homossexual, além da semelhança dos sexos, pode abrir à diferença e à alteridade, dado que é o encontro de duas pessoas, cada uma das quais é única.

Os casais homossexuais têm um desejo duradouro e favorável de viver juntos. Tudo o que favorece os empenhos mais duradouros deve ser aprovado plenamente.

Uma pessoa homossexual que vive com um parceiro poderá ser fonte de fecundidade social para o ambiente circunstante.

 

Fecundidade

Na linguagem corrente temos limitado o sentido do termo “fecundidade” ao conceito de “dar a vida” ou “procriar”. Isto significa reduzir o ser humano ao seu nível animal.

Antropologicamente, a fecundidade recobre um significado mais amplo: a capacidade de dar uma vida humana.

Nós não fazemos que reproduzir-nos, nós produzimos a nós mesmos reciprocamente, nós produzimos o novo. Trata-se de colocar no mundo uma pessoa afim de que esta pessoa nasça a si mesma. E isto vai muito além da mera procriação biológica.

Dar a vida humana é o que a teóloga Marie-Christine Bernard, especializada em epistemologia das ciências humanas, chama a “genitoralidade espiritual”. É a responsabilidade que diz respeito a todos nós de fazer nascer alguém a si mesmo, de alguém gerar a própria vocação, de fazer que ele possa entrar em sua própria vida: "Pôr no mundo naquele sentido mais amplo que recém descrevemos, portanto, não só em sentido físico, se apresenta como o caminho por excelência que a bênção de Deus, destinada a todos, pode realizar. A bênção de Deus é ao mesmo tempo a promessa que Ele faz, o seu mais caro auspício de uma vida boa, rica de significado e de frutos e sua realização através do nosso livre consenso. A pessoa humana nasce a si mesma quando entende que esta promessa é destinada pessoalmente a ela, e segue este caminho".

Então, por que rejeitar os casais homossexuais, apelando à sua não fecundidade? Também eles são fecundos ou criativos, mas de modo diverso. Jesus revolucionou a ordem biológica da fecundidade: o homem não é fecundo porque gera, é fecundo porque se reconhece como pertencente ao Cristo.

A passagem do Evangelho segundo João (151-4.12.16) indica que a fecundidade reside no cumprimento do mandamento do amor de Jesus, isto é, de entrar na comunhão de amor de Jesus e do Pai, de deixar-se aproximar de Deus, entrar na intimidade com Ele, tornar-se seu amigo. Este amor chega realmente a desapropriar-se de si próprio. Jesus impeliu este despossuir-se de si ao morrer sobre a Cruz, e é precisamente a Cruz que garante “ao extremo” sua fecundidade: “Se o pequeno grão que cai por terra não morre, permanece só; ao invés, se morre produz fruto in abundância”.

Portanto, entrar na fecundidade não é mais viver para si mesmos, mas é viver para qualquer outro. Segundo Cristo a fecundidade é o dom de si, é uma morte a si mesmo e uma ressurreição. Esta ultrapassa infinitamente os nossos limites humanos. Realiza-se não segundo uma vontade humana, mas numa livre consagração das nossas ações a Deus, é um dom de Deus.

Assim dá testemunho Yvon, homossexual e cristão empenhado a mais de quarenta anos em sua paróquia: “Após estes 40 anos de lutas, nos quais houve momentos de alegria e de desespero – e também falências – me admiro que eu ainda queira fazer parte desta Igreja que com tanta frequência me maltratou.

Todavia, se os cristãos (e não somente os seus pastores) soubessem o que a Igreja deve a estes homossexuais (homens e mulheres), que atuam dentro dela, no segredo de sua identidade, se os cristãos reconhecessem todos os tesouros de paciência, de devoção e de atenção aos mais “pobres”, dos quais os homossexuais a cada dia dão prova (ajuda aos doentes de SIDA e aos anciãos, trabalho no âmbito da saúde ou da educação, etc.), os cristãos não estariam tão inclinados a condenar milhares de seus irmãos e irmãs ou de aceitar-lhes somente as palavras”.

A verdadeira fecundidade cristã não está ligada em primeiro lugar ao fato de ter filhos, mas à realização do Reino nas nossas vidas.

 

 


(1) Artigo de Claude Besson

 

Texto original: Revue Études

Revisão para português: José Leote